"As Portas da Percepção" e "Céu e
Inferno" consistem de ensaios onde Aldous Huxley trata de sua experiência
com o uso de drogas, na busca por uma maior percepção, posto que o autor
apresentava certo inconformismo com as limitações do corpo humano.
Na introdução do livro que reúne esses ensaios,
Manuel da Costa Pinto adverte que essas experiências dizem respeito ao uso da
mescalina, que não causaria alucinações, mas uma espécie de alargamento da
percepção do mundo.
Interessante notar que essa experiência de Huxley com
a mescalina, droga elaborada a partir de um cacto considerado sagrado por
certos índios americanos, serviu de inspiração a Jim Morrison na criação da
banda de rock The Doors (As Portas).
Huxley descreve que, ao conhecer um pesquisador, se
propôs a servir de cobaia e tomar 4 decigramas de mescalina, em meio copo
d'água, para observar quais seriam os resultados.
Do efeito da droga, ele relata que, com certa
decepção, não foi tomado de visões, como esperava. O que aconteceu foi que teve
uma diferente percepção da realidade, como destaca nas passagens seguintes:
A modificação que realmente ocorreu nesse mundo nada
teve de revolucionária. Meia hora depois de ingerir a droga, comecei a perceber
um lento bailado de luzes douradas. Pouco depois surgiram imponentes
superfícies rubras que cresciam e se avolumavam a partir de brilhantes nódulos
de energia a assumir continuamente as mais variadas formas. De outra feita, ao
fechar os olhos, deparava-me com um complexo de estruturas cinzentas, de dentro
das quais brotavam, incessantemente, pálidas esferas azuladas que se iam
materializando e, à medida que o faziam, deslizavam silenciosamente para cima e
fugiam de cena. Mas em tempo algum apareceram faces ou formas de homens ou
animais. Nada de paisagens, espaços abissais, mágico crescimento e metamorfose
de edificações, nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma
parábola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira não era o mundo das
visões; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos. A grande
transformação se dava no reino dos fatos objetivos. O que tinha acontecido a
meu universo subjetivo era coisa que, relativamente, pouco importava.
(...) O que mais ressaltava era a constatação de
que as relações espaciais tinham perdido muito do seu valor e de que minha
mente tomava contato com o mundo exterior em termos de outras dimensões que não
as de espaço. Em situações normais o olho se preocupa com problemas tais como
Onde? — A que distância? — Como se situa em relação a tal coisa? Durante a
experiência com a mescalina, as perguntas tácitas a que a visão responde são de
outra ordem. Lugar e distância deixam de ter muito interesse. A mente elabora a
compreensão das coisas em termos de intensidade de existência, profundidade de
importância, relações dentro de um determinado padrão. Eu olhava para os
livros, mas não me preocupava, em absoluto, com suas posições no espaço. O que
notava, o que se impunha por si mesmo à minha mente, era o fato de que todos
eles brilhavam com uma luz viva e que, em alguns, o resplendor era mais intenso
que em outros. Nesse instante, a posição e as três dimensões eram questões de
menos. Não, evidentemente, que a noção de espaço houvesse sido abolida. Quando
me levantei e pus-me a andar, eu o fiz com toda a naturalidade, sem erros de
apreciação sobre a posição dos objetos.
O espaço ainda estava ali; mas havia perdido sua
primazia. A mente se preocupava, mais do que tudo, não com medidas e lugares, e
sim com a existência e o significado.
Desse modo, Huxley teve uma experiência sobre a
percepção da realidade. Ele destaca que o cérebro funcionaria como um filtro da
realidade, a limitar a nossa percepção, como forma de nos precaver de um
excesso de informações que tornaria difícil qualquer interpretação do mundo,
diante de nossas limitações físicas.
Refletindo sobre minha experiência, vejo-me levado a
concordar com o eminente filósofo de Cambridge, Dr. C. D. Broad, "que será
bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o tipo
de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de
percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é,
principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz de
lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como de
se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A
função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos
esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis
e sem importância, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveríamos
perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas
sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática".
Essa experiência permite que o autor faça uma
interessante reflexão sobre a tendência dos seres humanos em buscar respostas
nos seus pensamentos, na realidade que interpretam, em seu mundo interior, até
mesmo como forma de se protegerem da severidade, da austeridade, dos dilemas,
que a realidade impõe. Claro que, por outro lado, essa tendência humana pode
resultar nas mais diversas implicações, na medida em que a realidade, mesmo
posta, acaba sendo suplantada por crenças e percepções individuais.
Conclui-se perfeitamente, à luz dos documentos e
rituais religiosos, bem como dos monumentos da poesia e das artes plásticas que
chegaram até nós, que, na maioria das épocas e dos lugares, os homens têm
atribuído maior importância a suas visões interiores que às coisas objetivas
que conhecem. Têm julgado que o que vêem, quando de olhos cerrados, possui
maior importância espiritual que o visto à luz do dia. Qual a razão para isso?
A familiaridade gera indiferença, e o problema da sobrevivência é de uma
premência que vai da tediosa rotina à tortura. É para o mundo exterior que
abrimos os olhos todas as manhãs, é nele que, de bom ou de mau grado, temos de
procurar viver. No mundo interior não há trabalho nem monotonia. Visitamo-lo
apenas em sonhos e devaneios, e sua singularidade é tal que nunca encontramos o
mesmo mundo em duas ocasiões sucessivas. Que há, pois, de espantoso em
preferirem os seres humanos, via de regra, olhar para dentro de si mesmos, em
sua busca do sublime?
Em resumo, e considerando outros casos, o autor
verificou os seguintes sintomas:
1. A capacidade de lembrar-se e de raciocinar
corretamente não sofre redução perceptível. (Ouvindo os registros de minha
conversação, quando sob o efeito da droga, nada me leva a concluir que
estivesse mais estulto do que sou sob condições normais.)
2. As impressões visuais tornam-se grandemente
intensificadas e o olho recupera um pouco da inocente percepção da infância,
quando o senso não se achava direta e automaticamente subordinado à concepção.
O interesse pelo espaço diminui e a importância do tempo cai quase a zero.
3. Embora o intelecto nada sofra e a percepção seja
grandemente aumentada, a vontade experimenta uma grande transformação para
pior. O indivíduo que ingere mescalina não vê razão para fazer seja o que for,
e considera profundamente injustificável a maioria das causas que, em
circunstâncias normais, seriam suficientes para motivá-lo e fazê-lo agir. Elas
não o preocuparão, pela simples razão de ter ele melhores coisas em que pensar.
4. Essas melhores coisas podem ser experimentadas
(tal qual se deu comigo) lá fora, aqui dentro ou em ambos os mundos — o
interior e o exterior, simultânea ou sucessivamente. Que elas são melhores,
isso parece axiomático a quem quer que tome mescalina, desde que possua um
fígado são e uma mente isenta de angústias.
Huxley observa que a mescalina traz resultados
diferentes conforme as características de cada indivíduo, como ele comenta um
tanto quanto ironicamente:
Os indivíduos de imaginação mais fértil são, em sua
maioria, transformados em visionários pela mescalina. Alguns deles - e seu
número talvez seja bem maior do que geralmente se admite - não necessitam de
transformação; são permanentemente visionários.
Outra questão interessante abordada pelo autor diz
respeito à comparação que ele faz com outras práticas, como a ingestão
controlada de dióxido de carbono e seus efeitos para apaziguar os limites que o
cérebro imporia à percepção da realidade. Ele compara esses resultados também
com práticas de cunho religioso e místico, como jejum, mantras, flagelos etc.
Seriam aspectos que causariam visões de certa forma análogas às experiências
obtidas com drogas como a mescalina. Além disso, ele observa que existem
aspectos fisiológicos e psicológicos de cada indivíduo que podem trazem
diferentes percepções quanto a essas experiências.
Huxley não faz exatamente uma apologia ao uso de
drogas, na verdade ele considera a mescalina uma droga superior a outras (como
maconha, cocaína e LSD), porém, ainda não a considera a substância ideal para
intensificar experiências pessoais. De qualquer modo, o autor identifica uma
certa hipocrisia em não se discutir essa possibilidade do uso de substâncias
químicas como forma de potencializar uma maior compreensão, uma maior
percepção, seja do mundo, seja de si mesmo.
REFERÊNCIA
CONSULTADA:
HUXLEY, Aldous. As
Portas da Percepção & Céu e Inferno. Disponível em: <http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/upload/e_livros/clle000124.pdf>.
Acesso em: 06 mai. 2014.