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31 de dez. de 2015

O Caso do Cartel da Areia

A partir de uma escuta telefônica realizada pela Polícia Federal, em 2005, detectou-se um suposto cartel composto por três mineradoras de areia e uma empresa de consultoria, atuando na região da Grande Porto Alegre.
O caso levou o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) a aplicar multas que chegaram a 22,5% do faturamento das empresas em 2007.
Deveria ser desnecessário dizer que multa incidente sobre o faturamento é notadamente confiscatória, já que incide sobre impostos, insumos e custos diversos, sendo mais adequado ao bom senso a aplicação de multas sobre resultados, sobre lucro (não é esse o objetivo do cartel?).
Nesse caso, para caracterizar o "mercado relevante" e constatar a existência de cartel, o Cade levou em conta os seguintes fatores:
1) Que existe barreira à entrada no mercado, já que a mineração só é permitida mediante licença concedida pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM);
2) Que haveria uma limitação de comercialização em raio de 100km, devido a custos de transportes, inviabilizando a compra do produto de outros mercados.
Claramente se verifica que o primeiro fator é uma restrição estatal. Isso será verificado adiante.
Já o segundo fator, limite geográfico de comercialização, não parece relevante por si só. Trata-se de restrição à compra do produto de outros mercados, mas nada diz sobre a disponibilidade do recurso dentro do espaço considerado. Veremos adiante que esse fator está diretamente relacionado ao primeiro.


Decisão proferida pelo CADE no caso do Cartel da Areia
No caso do chamado "Cartel da Areia" (processo administrativo 08012.000283/2006-66), três mineradoras foram condenadas por suposta combinação de preços, com base em análise de custos proposta por empresa de consultoria contratada.
Antes de mais nada, a condenação da consultoria que realizou o estudo de preços parece absurda. Afinal, a mera realização de um estudo indicando otimização de preços e custos (levava em conta, também, a distância das jazidas ao mercado) não enseja a realização de controle de preços. Isso só seria teoricamente possível se a consultoria fosse, na verdade, a controladora das empresas, com poder total de comando. E, mesmo que fosse o caso, seria relevante considerar, ainda, os elementos para efetivação desse poder - a empresa de consultoria foi condenada com base no poder discricionário e absoluto concedido pelo art. 36 da lei 12.529/11.
Já as empresas mineradoras foram condenadas por indícios de combinação de preços e diante do fato de, juntas, deterem mais de 47% de participação de mercado.
Nesse sentido, é curioso que o voto do relator reconheça, conforme defesa das empresas, a existência de 170 empresas autorizadas pelo DNPM para extração de areia no Rio Grande do Sul. Não obstante, o douto relator entende "por óbvio, a grande quantidade de empresas com autorização do DNPM não afasta o fato de as representadas serem responsáveis por aproximadamente 50% da areia comercializada no Estado e por quase a totalidade da areia extraída no mercado relevante".
Mas isso não parece nada óbvio!
Se existiam 170 empresas autorizadas à mineração, por que elas não conseguiriam concorrer com as 3 formadoras do cartel? O processo não indica nenhum impedimento tecnológico. Assim, se as empresas do cartel praticavam preços mais altos, por que as outras, que não faziam parte do cartel (e supostamente praticariam preços "de mercado") não conseguiam concorrer com elas? Estaria o DNPM concedendo licenças a empresas não qualificadas para competição, cujo objetivo seria apenas locar seu direito para outras empresas? Se for esse o caso, por que o DNPM não revogou essas licenças ou concedeu licenças para empresas capacitadas?
Portanto, pelo menos no que diz respeito às demais empresas (seja lá quantas forem), com licença do DNPM e não integrantes do suposto cartel, não pareceu existir impedimento para atuação no mercado.
(...) Se a entrada no mercado for livre, as empresas em conluio podem, ao procurar manter seus altos preços, estar involuntariamente atraindo novos concorrentes, os quais revelarão a verdade: que preços mais baixos são sustentáveis.  Da mesma maneira, caso não ocorra a entrada de nenhum concorrente, tais empresas em conluio podem estar demonstrando que a estrutura de custos realmente justifica os atuais preços altos como sendo os mais baixos possíveis em um mundo concorrencial. (Kirzner, 2013)
Vê-se, claramente, que a indicação de participação de mercado, por si só, não é relevante. A concentração de mercado pode advir do sucesso empresarial (beneficiando os consumidores, não haveria mal nisso) ou da concessão de direitos de exclusividade. E direitos de exclusividade duradouros dependem da participação do estado.
Como, então, essas três empresas conseguiram formar um cartel, obtendo vantagens de preço sem atrair o interesse da concorrência?
O próprio relator do voto condutor no Cade admite que a concessão de licenças é uma grande restrição nesse mercado. Porém, simplesmente desconsidera o papel do estado na formação do cartel.
Possivelmente o controle das licenças não é apenas uma restrição ao mercado. É o próprio fator causador do cartel. Só isso explicaria que, supostamente, três empresas possam praticar preços combinados sem atrair o interesse da concorrência (que o processo do Cade admite ser existente, mas não infere o porquê de seu imobilismo).
Diga-se de passagem que não há nada de novo no fato do controle de acesso a mercados, por parte da atuação estatal, resultar na formação de cartéis e monopólios:
Os lucros de monopólio nunca podem ser duradouros, já que lucros são efêmeros, e todos acabam por reduzir-se a um retorno de juros uniforme. No longo prazo, os retornos de monopólio são imputados a algum fator. Qual é o fator que está sendo monopolizado neste caso? É óbvio que este fator é o direito de entrar na indústria. No livre mercado, esse direito é ilimitado para todos; aqui, no entanto, o governo concedeu privilégios especiais de entrada e venda, e são esses privilégios especiais ou direitos que são responsáveis pelo ganho monopolístico extra. Por isso o monopolista recebe um ganho de monopólio, não por ser dono de algum fator produtivo, mas pelo privilégio especial concedido pelo governo. E este ganho não desaparece no longo prazo como ocorre com os lucros; ele é permanente, dura por todo o tempo em que o privilégio permanecer e as avaliações do consumidor continuarem como estão. (Rothbard, 2012, p. 60)
A situação fica mais clara se considerarmos reportagem do site jornalístico Sul21, que indica a atuação do DNPM restringindo a área de extração mineral, além da falta de recursos governamentais para agilizar o processo de concessão de licenças - e aí já entra na história outro órgão estatal, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Referida reportagem traz indício sobre qual seria a origem do problema de falta de concorrência no mercado de areia de Porto Alegre:
“Convenhamos, a extração de areia está longe de ser o maior problema ambiental do Guaíba”, diz o superintendente do DNPM, que não entende porque o órgão ambiental do Estado [Fepam] demora tanto para fazer o zoneamento ecológico-econômico que pode permitir (ou não) a retomada da extração de areia na mais antiga jazida subaquática de Porto Alegre. (Hasse, 2011)
E mais, a atuação estatal não estaria apenas inibindo a atuação direta da concorrência (entrada de competidores e regularização de jazidas), mas também a própria adoção de alternativas tecnológicas para suprir o mercado. É o caso, por exemplo, da utilização da areia resultante da dragagem hidroviária:
Um dos adeptos desse casamento é o atual diretor da Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH), Vanderlan Vasconselos, advogado disposto a buscar na extração de areia uma solução para desassorear os canais de navegação do Lago Guaíba e da Laguna dos Patos. Aventada em passado remoto, no entanto, a possível parceria areeiros-hidrovias foi soterrada quando se concluiu que a amortização de uma atividade pela outra redundaria na redução no orçamento do órgão público encarregado de contratar as dragagens. (Hasse, 2011, grifo meu)
Claro está, portanto, que se não consideramos apenas uma análise superficial, de empresas envolvidas em "mercado relevante" (como é procedimento do Cade), podemos identificar, a partir da própria observação dos aspectos concorrenciais, a existência de disputas de poder que ensejam a formação de cartéis. E, normalmente, por trás dessas disputas, encontramos a atuação estatal (afinal, é o estado que detém o poder de polícia, capaz de impedir a atuação das forças da concorrência).
Em complemento, o caso também poderia estar relacionado à disputa entre os produtores de areia e seus compradores. Destaque-se que o processo indica que a areia extraída era quase totalmente direcionada para a construção civil. Não obstante, o processo não considera sobre o poder dos compradores, dentre outros aspectos. Ressalte-se que seria adequado uma análise concorrencial observar pelo menos as cinco forças competitivas indicadas por Michael Porter: (1) poder de negociação dos fornecedores; (2) poder de negociação dos compradores; (3) produtos substitutos; (4) potenciais entrantes e (5) concorrentes de mercado (Porter, 1991).
Aliás, é interessante notar que a defesa de uma das empresas relatou a oitiva de testemunhas de empresas concorrentes, no inquérito policial que deu origem ao processo. De fato, não devemos ser ingênuos em deixar de considerar que há sempre muitos interesses envolvidos em casos assim, não só aqueles dos participantes do suposto cartel. Normalmente não se trata de uma luta pela justiça, mas de uma luta pelo poder.

Referências consultadas:

BRASIL. Lei n° 12.259 de 30 de novembro de 2011. Disponível em: <http://tinyurl.com/nhqdlqs>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Cade.  Cartel de Extração de Areia (PA nº 08012.000283/2006-66). Voto do conselheiro-relator Paulo Furquim de Azevedo, 17 dez. 2008. Disponível em: <http://tinyurl.com/ljeoz8e>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Combate a Cartéis e Programa de Leniência. 3° ed., 2009. Disponível em: <http://tinyurl.com/hgvll6l>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Guia Prático do CADE: a defesa da concorrência no Brasil. 3° ed., 2007. Disponível em: <http://tinyurl.com/zye4qpd>. Acesso em: 12 fev. 2015.

HASSE, Geraldo. Multa ao cartel da areia no rio Jacuí empoçou na Justiça. Sul21, 22 ago. 2011. Disponível em: <http://tinyurl.com/hnfguwx>. Acesso em : 12 fev. 2015.

KIRZNER, Israel M. A Irresistível Força da Concorrência de Mercado. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 12 abr. 2013. Disponível em: <http://tinyurl.com/hlg2osp>. Acesso em: 12 fev. 2015.

PIRES, Klauber Cristofen. O Estado e os Carteis - faça o que digo, não o que faço. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 11 mai. 2011. Disponível em: <http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=976>. Acesso em: 12 fev. 2015.

PORTER, Michael. Estratégia Competitiva: técnicas para análise da concorrência e indústria. 8. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

ROTHBARD, Murray N. Governo e Mercado: a economia da intervenção estatal. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2012.

30 de nov. de 2015

O Cade e o Embuste do Direito da Concorrência

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é a poderosa estrutura governamental responsável, no Brasil, por assegurar a livre concorrência, agindo no sentido de reprimir "o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros", conforme §4º do art. 173 da Constituição Federal.


Dentre tais atribuições, está o Cade naturalmente incumbido de inibir o conluio empresarial para regulação de preços. Afinal, como destaca Carvalho (2013):
O cartel é tido como uma conduta praticada por particulares que se reúnem com o intuito de sustar a livre concorrência ou restringi-la e embaraçar a liberdade de escolha do consumidor, ocasionando um atraso no setor cartelizado, uma vez que não há concorrentes e a vontade de inovar torna-se cada vez mais imprópria, já que a presença de um mercado consumidor efetivo e presente garante os lucros desses empresários.
E o próprio Cade nos adverte dos efeitos perniciosos dos cartéis:
O poder de um cartel de limitar artificialmente a concorrência traz prejuízos também à inovação, por impedir que outros concorrentes aprimorem seus processos produtivos e lancem novos e melhores produtos no mercado. Isso resulta em perda de bem-estar do consumidor e, no longo prazo, perda da competitividade da economia como um todo. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2002), os cartéis geram um sobrepreço estimado entre 10 e 20% comparado ao preço em um mercado competitivo, causando perdas anuais de centenas de bilhões de reais aos consumidores. (Cade, 2009)
Mas será isso verdade?
Considero que a análise econômica baseada no equilíbrio, que fundamenta a teoria econômica tradicional e o direito concorrencial, não expressa a realidade, não identifica corretamente as forças de mercado. Entendo com mais adequadas as análises que consideram a dinâmica da mudança, a busca de oportunidades de negócio, a "destruição criadora" (como apontado por Joseph Schumpeter) e o "processo de mercado" (como apontado por Isarel Kirzner, entre outros autores). Não obstante, não é preciso se aprofundar na teoria econômica. Bastam os seguintes questionamentos:
Se o cartel é formado por um grupo de empresas para aumentar preços, devemos intuir que os preços mais altos atrairiam novos concorrentes. Ora, a atuação da concorrência naturalmente levaria os preços a cair. O efeito de um cartel seria, assim, momentâneo - desde que fosse assegurada a atuação da concorrência.
Qual seria, então, o fundamento do Cade ao declarar "o poder de um cartel de limitar artificialmente a concorrência"? O cartel teria poder de polícia? De coação? Impediria o acesso ao mercado pelo poder da violência? Se for o caso, podemos nos valer do direito criminal, não haveria necessidade de toda a estrutura administrativa do Cade.
Mas o Cade vai além e diz que um cartel "traz prejuízos também à inovação, por impedir que outros concorrentes aprimorem seus processos produtivos e lancem novos e melhores produtos no mercado"? Como um cartel faria isso? Mesmo se tivesse o controle total sobre um determinado mercado, como poderia impedir que uma empresa, de fora desse mercado, inovasse, lançasse um produto substituto, um novo processo tecnológico etc.?
Na atuação investigativa de cartéis, destaca-se a realização de acordos de leniência, que seriam uma espécie de delação premiada (Araújo, 2013, apud Carvalho, 2011).
Porém, na junção dos elementos que caracterizariam um cartel, uma das principais questões diz respeito à demarcação do chamado "mercado relevante". Tal conceito diz respeito à delimitação de um conjunto, de um limite de mercado, no qual será considerado se determinada operação teria implicações contrárias à chamada "defesa da concorrência".
O conceito é considerado pelo Cade da seguinte forma:
O mercado relevante é a unidade de análise para avaliação do poder de mercado. Define a fronteira da concorrência entre as firmas. A definição de mercado relevante leva em consideração duas dimensões: a dimensão produto e a dimensão geográfica. A idéia por trás desse conceito é definir um espaço em que não seja possível a substituição do produto por outro, seja em razão do produto não ter substitutos, seja porque não é possível obtê-lo.
Assim, um mercado relevante é definido com sendo um produto ou grupo de produtos e uma área geográfica em que tal(is) produto(s) é (são) produzido(s) ou vendido(s), de forma que uma firma monopolista poderia impor um pequeno, mas significativo e não-transitório aumento de preços, sem que com isso os consumidores migrassem para o consumo de outro produto ou o comprassem em outra região. Esse é chamado teste do monopolista hipotético e o mercado relevante é definido como sendo o menor mercado possível em que tal critério é satisfeito. (Cade, 2007)
Além da determinação do "mercado relevante", cabe considerar que a lei 12.529/11, em seu art. 36, traz um considerável rol de práticas que seriam atentatórias à livre concorrência.
Não obstante a indicação do que seriam práticas caracterizadoras de infração à ordem econômica, o art. 36 deixa claro que a responsabilização dos agentes se dá "independentemente de culpa". E não é só isso, os supostos atos de infração à ordem econômica devem ser considerados "sob qualquer forma manifestados" e considerados, quanto a seus efeitos, "ainda que não sejam alcançados".
Ou seja, a lei 12.529/11 pode ser considerada uma espécie de "super direito penal do inimigo", já que a responsabilização não se dá apenas pelo dolo, nem mesmo apenas pela culpa, mas "independentemente de culpa" - o que é certamente inconstitucional e, curiosamente, pouco discutido.
Mais ainda, a responsabilização dos agentes, mesmo sem dolo, mesmo sem culpa, deve ser considerada "ainda que não sejam alcançados" os objetivos supostamente pretendidos. O Cade assume, assim, os contornos de uma divisão de "polícia pré-crime", como no filme Minority Report.
O comentário de Pires (2009), realizado antes da lei 12.529/11, ainda se mostra atual e relevante:
(...) A boa doutrina nos ensina que a lei há de estabelecer para o administrado uma conduta negativa (deverá abster-se do ato, tal como "matar alguém") ou positiva (deverá produzir o ato, tal como "votar"). Bizarra é também a previsão de que a infração independa de culpa. Ora, um delito há de ser cometido com dolo ou culpa. Com dolo, se foi cometido propositalmente, ou se o agente conhecia os potenciais efeitos do seu ato e os desprezou ao consumá-lo; com culpa terá agido se o cometeu em virtude de imperícia, imprudência ou negligência.
(...)
Mas então temos um problema à frente: se a pessoa (física ou jurídica) não agiu com negligência, isto é com culpa, então agiu com diligência, a saber: preveniu-se, anteviu e evitou, razoavelmente, a situação que o legislador denomina de "atos de qualquer forma manifestados", o que reduz estes atos, na verdade, a meras situações de fato.
Vejamos agora a expressão "que tenham por objeto ou que possam produzir os seguintes efeitos". A oração "que tenham por objeto" denuncia a vontade do acusado em produzir os efeitos, o que poderia remeter ao caso do dolo, mas a expressão seguinte "ou que possam produzir os seguintes efeitos", de pronto já a revoga, tornando-a irrelevante. Isto significa que o cidadão pode ser indiciado tanto sem "pretender" quanto sem "prever" que os efeitos sejam produzidos. Ainda, coloca os "efeitos" no campo da mera possibilidade, ao estabelecer que os atos "possam" vir a ser produzidos, aqui autorizando CADE a acusar alguém em virtude de uma mera "tese" econômica, e que enfatiza esta disposição com a parte final: "ainda que não sejam alcançados" (...) (Pires, 2009)
Além disso, o §2° do mesmo art. 36 presume a caracterização de posição de mercado a capacidade de controle ou coordenação de 20% do mercado, percentual esse que pode ser desconsiderado pelo Cade conforme seus critérios.
Desse modo, basta uma leitura simples do art. 36 da lei 12.529/11 para percebermos o poder ditatorial atribuído ao Cade. Através desse órgão, o estado assume o poder de total controle da economia.
Basta considerar que o próprio conceito de "mercado relevante", divulgado pelo Cade, é irrelevante frente ao poder legal que lhe é conferido. Bastam revisões ou mesmo pequenas alterações de conceito e não haverá choque com a lei 12.529/11 (veja que o conceito de "mercado relevante" acima entra em contradição com o §2° do art. 36 lei 12.529/11).
Assim, é curioso perceber como toda a linguagem de defesa da concorrência, de combate à concentração econômica, é utilizada com propósitos totalmente distintos. Livre mercado, concorrência, não é controle estatal. Controle estatal é, e sempre será, intervenção. Não importa o linguajar utilizado para escamoteá-la.
Pode parecer estranho ao leitor que um dos mais importantes controles governamentais sobre as competições eficientes e, portanto, concessões de quase-monopólio, são as leis antitruste. Poucas pessoas, economistas ou não, questionaram o princípio das leis antitruste, particularmente agora que constam, há alguns anos, nos códigos legais. Como é verdade para muitas outras medidas, a avaliação das leis antitruste não procedeu de uma análise da natureza ou das consequências necessárias, mas de uma reação superficial quanto aos propósitos anunciados. A crítica principal dessas leis é que 'não foram longe o bastante'. Alguns dos mais incisivos ao proclamar a crença no 'livre mercado' têm sido mais clamorosos em exigir severas leis antitruste e a 'quebra de monopólios'. Mesmo os economistas mais 'direitistas' têm criticado, com cautela, certos procedimentos antitruste, sem ousar atacar o princípio das leis per se. (Rothbard, 2012, p. 80-81)
Diante do exposto, qual a relevância de identificarmos os critérios básicos de análise de práticas restritivas? Pouca ou nenhuma. Mesmo que, em determinada operação, se tome o cuidado de não caracterização das infrações indicadas na lei 12.529/11, não há qualquer segurança jurídica a respeito. A própria lei assegura ao Cade amplo poder discricionário para definir casos relevantes de apreciação.
E, se alguém duvida disso, basta considerar que fusões caracterizadoras de poder de mercado foram aprovadas com restrições que não mudaram a configuração de concentração que supostamente o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência visaria combater (vide casos Ambev e Brasil Foods, por exemplo). Ou basta considerar a clara alteração de parâmetros na análise de fusão de empresas de distribuição de asfalto (Greca Distribuidora, Betunel e Centro Oeste Asfaltos), cujo caso não se enquadrava nos critérios objetivos da lei, restando os subjetivos (Duarte, 2014).
Por fim, a questão não diz respeito a se o Cade utiliza todos os poderes discricionários possibilitados pela lei ou se estabelece critérios justos de análise. O problema é que esse órgão permite ao estado estabelecer amplo controle sobre a economia. Diz-se que se trata de defesa da concorrência. Está claro que, por trás desse linguajar, encontra-se apenas o poder de regulação estatal e não a defesa da livre concorrência.

Referências consultadas:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Lei n° 12.259 de 30 de novembro de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12529.htm>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Cade.  Cartel de Extração de Areia (PA nº 08012.000283/2006-66). Voto do conselheiro-relator Paulo Furquim de Azevedo, 17 dez. 2008. Disponível em: <http://tinyurl.com/ljeoz8e>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Combate a Cartéis e Programa de Leniência. 3° ed., 2009. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/upload/Cartilha%20Leniencia%20SDE_CADE.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Guia Prático do CADE: a defesa da concorrência no Brasil. 3° ed., 2007. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/publicacoes/guia_cade_3d_100108.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2015.

CARVALHO, Erick L. F. A Política Antitruste no Brasil e o Combate a Cartéis à Luz do Novo CADE. Thesis Juris, v. 2, n. 2., 2013. Disponível em: <http://www.revistartj.org.br/ojs/index.php/rtj/article/view/21>. Acesso em: 12 fev. 2015.

DUARTE, Filipe R. A análise de atos de concentração pelo Cade: o controle de operações com fulcro no art. 88º, §7º da lei 12.529/11. Migalhas, 09 dez. 2014. Disponível em: <http://tinyurl.com/ope6ulu>. Acesso em: 12 fev. 2015.

KIRZNER, Israel M. A Irresistível Força da Concorrência de Mercado. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 12 abr. 2013. Disponível em: <http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=1572>. Acesso em: 12 fev. 2015.

PIRES, Klauber Cristofen. A Lei Antitruste e a AMBEV - uma análise sob a norma da razão. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 26 ago. 2009. Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=362>. Acesso em: 12 fev. 2015.

PIRES, Klauber Cristofen. O Estado e os Cartéis - faça o que digo, não o que faço. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 11 mai. 2011. Disponível em: <http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=976>. Acesso em: 12 fev. 2015.

ROTHBARD, Murray N. Governo e Mercado: a economia da intervenção estatal. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2012.

10 de out. de 2015

Quando o Consumidor Quer Ser Enganado

Em uma aula de propriedade intelectual, curso de pós-graduação em direito, foi apresentado o seguinte questionamento:
O Walmart, no Rio Grande do Sul, divulgava informações (panfletos e cupons) com os preços praticados pelos concorrentes. Seria tal prática legal?
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) entendeu que não (ver AQUI).
Argumentei que essa visão, que advém do direito concorrencial e de algumas teorias econômicas, é completamente equivocada. Observei o seguinte:
1) Antigamente eu verificava lojas do Walmart fazendo essa comparação, particularmente com o Carrefour, mas não constatava mais tal prática.
2) O argumento que a disponibilização desse tipo de informação ensejaria prática monopolista não é correto. Primeiro porque a concorrência propicia ao consumidor adquirir produtos melhores e mais baratos. Segundo porque, se o suposto monopolista eliminasse a concorrência e voltasse a praticar preços altos, novos concorrentes surgiriam. Terceiro porque surgiriam alternativas de comercialização, caso o canal tradicional de varejo fosse prejudicado (por exemplo, via internet), em consonância com o conceito de "destruição criadora" (ver AQUI e AQUI).
3) O consumidor faz uma ponderação entre qualidade e preço, entre outros fatores (status, utilidade etc.). São os desejos do consumidor que ensejam a variedade de oferta de produtos, dificultando que uma empresa concentre todas as vendas em um mercado - o monopólio é dado pela impossibilidade de escolha, não pelo acesso à informação.
4) Que, quando o Walmart iniciou atividades no Brasil, fez promoção de geladeiras a preços muito baixos, levando o fornecedor a comprar de volta o estoque para não prejudicar outros clientes. Ou seja, esquece-se que os fornecedores também têm poder de mercado, que são uma das forças concorrenciais (ver AQUI).
A partir daí, fiquei a ouvir as tentativas de refutação desses argumentos, todas infundadas:
A) Uma aluna disse que o Walmart não podia apresentar a informação comparativa de preços porque o consumidor poderia ser confundido. Por exemplo: em determinado dia, seria feita uma oferta mostrando que o preço no Walmart estava mais barato. Em outro dia, quando tal propaganda não fosse apresentada, o consumidor consideraria que o Walmart é mais barato porque viu a propaganda anteriormente.
Ora, esse tipo de argumento consiste em considerar o consumidor absolutamente incapaz. Parte do pressuposto que o consumidor considera o anúncio, mas não o preço indicado no mesmo, que não faz comparação, que não tem nenhuma experiência de compras anteriores.
B) O professor disse que a decisão do TJ-RS estava correta, pois o objetivo da concorrência não seria atender o consumidor, mas o mercado. E ainda destacou que a base desse entendimento seria a Constituição Federal.
Tentei argumentar que a concorrência deveria ser encarada como algo supraconstitucional (afinal, a concorrência não é invenção da Constituição Federal, nem existe em apenas um país - ainda mais sendo esse país o Brasil).
C) Um aluno chegou a dizer que eu "partia da premissa errada", pois não estava analisando a questão "pelo ponto de vista histórico".
Queria ele dizer, com isso, que a história provaria que o mercado tende a gerar concentração e eliminar a concorrência. Ou seja, que a concorrência seria uma força auto-destrutiva e que não se renovaria - o mercado seria estático.
Obviamente, nada mais equivocado. O referido aluno apenas demonstrou ignorância sobre história e economia. Fiquei com a impressão que, na visão dele e do professor, o direito deve ter inventado a economia.
D) O argumento mais recorrente foi que, se uma empresa vende mais barato, ela irá concentrar o mercado e passará a vender mais caro, prejudicando o consumidor.
É incrível como as pessoas não percebem que, se uma empresa vende mais barato, as outras empresas serão forçadas a vender mais barato também. Se não conseguirem, terão que encerrar as atividades ou mudar de nicho de mercado.
Porém, se uma empresa pratica preços baixos e consegue abocanhar a maior parte do mercado, como ela fará para aumentar preços depois, sem atrair novos concorrentes? E como ela irá impedir que novos canais de venda sejam criados? Ou que fornecedores resolvam criar suas próprias lojas?
A resposta seria que essa empresa só conseguiria fazer algo assim se tivesse garantida a reserva de mercado, o que teria que ser obtido pela proteção estatal. E garantido por consumidores, como o professor e alunos dessa classe, dispostos a pagar mais caro (embora eu desconfie que, na prática, a ação não corresponda ao discurso).
Enfim, ninguém soube responder minhas provocações.
O professor acabou dizendo algo no sentido que não adiantaria questionar, pois ele não mudaria de opinião.
Como a aula não era sobre direito concorrencial, e o assunto já estava incomodando o professor, decidi não questionar mais a respeito. 


8 de set. de 2015

Alíquota de ICMS sobre energia deveria ser de 12%

O Recurso Extraordinário 714.139-SC, sem data de julgamento no Supremo Tribunal Federal (quando escrito este texto), discute a adequação de alíquota do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) incidente sobre energia elétrica frente aos princípios da seletividade e essencialidade.
No entanto, a discussão, que se originou em Santa Catarina, pretende reduzir o ICMS incidente sobre energia elétrica para o nível da alíquota geral (de 25% para 17%).
Considerando o Regulamento de ICMS do Estado do Espírito Santo, analiso abaixo que poderia ser defendida uma alíquota inferior à geral, com base nos princípios da seletividade e isonomia - análise que pode ser pertinente junto aos regramentos de outros estados.

I. Sobre seletividade e essencialidade na definição de alíquota de ICMS
A Constituição Federal, em seu art. 155, §2º, inciso III, estabelece que o ICMS "poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços" - ao contrário do IPI (art. 153, §3º, inciso I), que deverá ser seletivo.
Do dispositivo constitucional se infere que, ao instituir o ICMS, os Estados e Distrito Federal devem optar em estabelecer uma alíquota única, ou, caso contrário, definir alíquotas diversas com base no princípio da essencialidade dos bens e serviços a serem tributados.
Ou seja, o "poderá ser seletivo" não significa que o Estado ou Distrito Federal possa abrir mão desse critério, à sua total conveniência. Significa, isso sim, que, uma vez que se opte pela seletividade, esta deverá levar em conta a essencialidade das mercadorias e serviços (trata-se de um poder-dever).
Caso contrário, e isso não faria sentido, tornar-se-ia expressão inútil o comando constitucional do art. 155, §2º, inciso III, que determina que a seletividade deve se dar "em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços".
No caso do Estado do Espírito Santo, o Decreto nº 1.090-R (Regulamento do ICMS-ES) estabelece, em seu Capítulo VIII (arts. 71 e 72), diferentes alíquotas para o tributo, do que se infere a opção pelo princípio da essencialidade, em acordo com o preceito constitucional.
Isso posto, passemos a analisar o critério de seletividade adotado no referido regramento:
A análise dos artigos 71 e 72 do Decreto nº 1.090-R evidencia que a distinção das alíquotas de ICMS incidentes sobre produtos e serviços foi estipulada com algum critério discricionário, desconhecido, sem nenhuma relação com o princípio da essencialidade.
Desnecessário destacar que energia elétrica é essencial para a vida moderna, para assegurar a dignidade humana. Mostra-se pouco provável o convívio em sociedade sem a disponibilidade de iluminação, utilização de equipamentos e serviços necessários ao trabalho, à fabricação de produtos, à segurança, ao consumo etc., independentemente da quantidade consumida. Não sem razão, a lei 7.783/1989, em seu art. 10, inciso I, destaca os serviços de distribuição de energia elétrica como essenciais.
Assim, fica evidente a afronta ao mandamento constitucional quando observarmos que itens cuja essencialidade nos tempos modernos é indiscutível, como energia e comunicação, são taxados com alíquota de 25% no Regulamento do ICMS-ES (RICMS-ES), enquanto itens notadamente pouco essenciais, até supérfluos, como pedra de mármore, bebidas alcoólicas, fumo, jóias, entre outros, têm alíquota igual ou menor.
A tabela seguinte é exemplificativa e elucidativa de tais distorções:

II. Qual deveria ser a alíquota de ICMS sobre energia elétrica
As operações com energia elétrica no Estado do Espírito Santo são taxadas à alíquota de 25% de ICMS (art. art. 71, III, Decreto nº 1.090-R). Não obstante, é prevista alíquota de 12% de ICMS no consumo de energia exclusivamente direcionado para produção agrícola (art. 71, II, c) e para consumidores que gastem até 50kWh por mês (art. 71, II, d).
Tal distinção está longe de caracterizar observância ao princípio da essencialidade. Antes o contrário, configura um subsídio ao setor agrícola (cuja aplicabilidade é discutível, ao relacionar consumo de energia com produtividade) e, à primeira vista, parece observar a capacidade contributiva do consumidor de menor renda.
No entanto, não se mostra coerente tal diferenciação.
De um lado, o estado incentiva o gasto de energia no setor agrícola, aparentemente relacionando o consumo energético com o aumento da produtividade. Se isso é verdadeiro, por que não utilizar o mesmo critério para outros setores? Não seria um estímulo à economia e, por extensão, à arrecadação de ICMS?
De outro lado, o estado inibe o consumidor de fazer uso de um bem essencial para a vida moderna, para sua inclusão social, ao estabelecer um patamar diminuto  de consumo de energia elétrica com alíquota de ICMS reduzida para o consumidor de baixa renda, de apenas 50kWh por mês.
A esse respeito, comparando informações fornecidas pela Aneel (ver AQUIe pelo IDEC (ver AQUI), observamos que uma geladeira comum (modelo novo, eficiente), mais uma televisão pequena (14") e um ferro de passar roupa gastariam aproximadamente o equivalente a 41,4kWh. O consumidor teria que tomar cuidado quanto ao uso de lâmpadas, além de não utilizar nenhum outro eletrodoméstico, para se manter dentro do limite de 50kWh. E como ficaria, nessa situação, o consumidor de baixa renda com filhos? Não estaria em situação ainda pior que aquele que vive sozinho? De certo que esse critério não atende o princípio da isonomia e muito menos o da capacidade contributiva.
Tais situações apenas evidenciam a anomalia que constitui a diferenciação de alíquotas de ICMS no Estado do Espírito Santo. Além de duvidosa - pois o valor de R$/kWh (reais por quilowatt-hora) varia conforme faixa de consumo, de acordo com regulação da Aneel - tal distinção em nenhum momento leva em conta o preceito constitucional da essencialidade.
Desse modo, diante do desrespeito à Constituição Federal, e levando em conta que o Estado do Espírito Santo optou pela adoção da seletividade sem observar a essencialidade na definição das alíquotas aplicáveis ao ICMS, cabe ao Poder Judiciário corrigir tal distorção.
Assim procedendo o Judiciário não estará legislando positivamente, não estará violando o princípio da legalidade tributária, mas, isto sim, corrigindo uma distorção, ao indicar a alíquota aplicável prevista no próprio Regulamento do ICMS..
E nada mais justo que atribuir ao consumo de energia elétrica a alíquota de 12%, já prevista para o setor agrícola (art. 71, II, d). Manter alíquota distinta para outros contribuintes não dirime a ofensa ao texto constitucional, já que estabelece distinção não relacionada à essencialidade do bem energia elétrica.
Note-se que o estado não está diretamente beneficiando o fornecimento de alimentos (esses continuam sendo taxados com alíquota de 17% e 12%, conforme operação interna ou interestadual), mas o consumo "na produção agrícola, inclusive de irrigação" (art. 71, II, d, RICMS-ES) - por que não vestuário, por que não outros setores de bens essenciais?
A concessão de tal privilégio para apenas uma atividade, aparentemente com base no pressuposto que maior gasto com energia implica em maior produtividade, constitui-se em ofensa ao princípio da isonomia, em concessão de privilégio odioso, em afronta direta ao princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei (art. 5º, art. 19, inciso III e art. 150, inciso II, da Constituição Federal).
O princípio da seletividade não deve permitir distinção individual entre contribuintes, pois sua incidência é específica a produtos e serviços. Tal é o comando do art. 153, §3º, inciso I, e do art. 155, §2º, inciso III, do texto constitucional.
Portanto, a adoção da alíquota comum do Regramento do ICMS-ES nas operações internas (17%), embora bem-vinda aos contribuintes, não corresponderia à efetivação da justiça, posto que ainda manteria uma distorção não justificável ao princípio da essencialidade. 

25 de ago. de 2015

Sobre a Teoria das Restrições

Na definição se seu iniciador, o físico israelense Eliyahu Goldratt, a Teoria das Restrições busca aplicar a eficácia das ciências exatas nas ciências humanas, particularmente no que diz respeito a administração de empresas.
Para tal, busca-se uma compreensão de sistemas frente a um processo de raciocínio que estabelece relações de causa-e-efeito.
Não se trata, porém, de tarefa simples. Primeiro porque, como já estabeleceu Peter Senge em A Quinta Disciplina, somos condicionados a fragmentar problemas, como se isso tornasse mais fácil lidar com temas complexos. O preço que se paga é que perdemos a visão de consequência das ações, a conexão entre a ação local e o resultado global. Segundo porque procurar causas inerentes aos conflitos, na busca de soluções, pode ser um desafio considerável.
Não significa isso que a Teoria das Restrições valorize a complexidade. Antes o contrário, busca-se priorizar soluções simples. Nesse contexto, três axiomas básicos da Teoria das Restrições devem ser considerados: convergência, consistência e respeito.

CONVERGÊNCIA
O senso comum estabelece que quanto mais elementos forem necessários para descrever um sistema, mais complexo esse sistema será.
Porém, em física, complexidade não está relacionada à descrição do sistema. Complexidade está relacionada ao comportamento do sistema, sua forma de controle: quanto maior o grau de liberdade de um sistema, mais complexo este será.
Da mesma forma, a definição de problema deve corresponder à verificação de algo que impeça um determinado sistema de atingir seu objetivo. Essa definição envolve a identificação do conflito que deve ser tratado na busca de uma solução.
Assim, o axioma da Convergência estabelece que não existem sistemas complexos: basta que saibamos identificar o ponto de foco para resolução do conflito.

CONSISTÊNCIA
O axioma da Consistência simplesmente estabelece que, na realidade, não existem conflitos.
Não parece factível, mas essa é a aproximação necessária para não acabarmos na realização de meros acordos (compromise).
Os conflitos são formados por percepções, crenças e suposições. Ao estabelecer que não existem conflitos na realidade, procurarmos quebrar o paradigma dessas concepções estabelecidas para mudar a situação atual.

RESPEITO
Trata-se do pressuposto que as atitutes das pessoas têm sempre algum motivo, por mais que consideremos inapropriadas suas ações.
Adotar o pressuposto do respeito é procurar considerar a lógica inerente aos argumentos apresentados em cada situação, procurando entender qual o sentido das atitudes dos indivíduos.
É necessário, para tal, saber se controlar e estar preparado para testar as próprias idéias, como forma de fortalecê-las ou mudá-las, e não como defesa de um ponto de vista irrevogável, pessoalizado, que gere conflito.

ELEMENTOS DOS SISTEMAS
Tratando prioritariamente de um contexto empresarial, de administração, devemos levar em conta que o objetivo das empresas é ganhar dinheiro.
Afinal, se a organização não for lucrativa, não terá como atender nenhuma outra prioridade que lhe for estabelecida. E, como observado por Peter Drucker, a empresa que não gera lucro, que não cria riqueza, deve ser vista com maus olhos pela sociedade. Afinal, a empresa em prejuízo toma os recursos da sociedade (na forma de trabalho e capital) e não devolve valor - destrói recursos.
Assim, uma abordagem TOC deve considerar, como elementos do sistema, que devem ter suas necessidades satisfeitas no presente e no futuro, três grupos de interesses de igual importância:
1. Os investidores, que assumem o risco do negócio e empregam recursos para que o mesmo se torne realidade.
2. Os empregados, que são os responsáveis pela operação eficiente da organização, para que seu objetivo social de criação de riqueza seja alcançado.
3. Os clientes, que expressam as demandas da sociedade para existência da organização, além de outras partes interessadas (fornecedores, governo, associações etc.).

PERGUNTAS ESTRATÉGICAS
São determinados quatro questionamentos (perguntas estratégicas) que devem ser considerados para melhoria do desempenho organizacional:
1. O que mudar?
Significa procurar identificar qual o fator que impede que a realidade atual seja diferente. É aquilo que bloqueia um melhor desempenho do sistema. Normalmente está associado à concepção corrente que determina que “um recurso ocioso é um grande desperdício” (busca de eficiência local).
2. Para o que mudar?
Trata-se do esforço de descobrir uma solução, que seja simples e prática, para melhoria do desempenho atual - algo que tornará mais fácil a vida das pessoas que trabalham na organização, eliminando o problema identificado na primeira pergunta.
3. Como causar a mudança?
Como proceder para convencer as pessoas certas em prol da mudança, obtendo concordância quanto às medidas a serem tomadas?
O agente de implantação de mudanças deve agir com cautela, procurando a compreensão das medidas a serem adotadas, evitando simplesmente ditar o que deve ser feito e considerando o princípio da mínima interferência.
4. Como garantir a melhoria contínua?
Focar os esforços de melhoria proporciona resultados mais eficazes que agir em várias áreas ao mesmo tempo. A ação focada é elemento fundamental para se atingir continuidade na melhoria no sistema.

DECISÃO POR CONSENSO
Seis passos são necessários no processo decisório, que deve buscar compreensão e consenso, em conformidade às perguntas estratégicas apresentadas anteriormente:
1. Identificar o problema (causas, abrangência, definição);
2. Definir a direção da solução a ser implantada;
3. Definir os elementos necessários para implantar a solução;
4. Identificar eventuais consequências negativas da solução;
5. Avaliar os obstáculos para implementação;
6. Estabelecer os detalhes de implantação da solução.

O PROCESSO DE CINCO PASSOS
O Processo de Cinco Passos constitui elemento para avaliação de eficácia, de modo que novos avanços sejam possíveis sem que se instale acomodação após implantação de soluções:
1. Identificar a restrição atual no sistema;
2. Decidir como melhorar o desempenho na restrição;
3. Subordinar o que for necessário para operação na restrição;
4. Aumentar o desempenho na restrição;
5. Se, em algum passo anterior, uma restrição for superada, volte ao passo 1 (não permita que acomodação se torne uma restrição).

31 de jul. de 2015

Teoria das Restrições Aplicada a Projetos

A maioria dos projetos não termina no prazo, ou não cumpre o orçamento ou não entrega tudo que foi prometido.
Isso acontece por uma série de fatores: ocorrência de variações, recursos não disponíveis no momento necessário, conflito de prioridades, retrabalho etc.
Porém, a maior causa de falhas no cumprimento de prazos em projetos está relacionada à forma tradicional de gerenciamento. E isso decorre da tendência de lidarmos com as consequências e não com as causas dos problemas.
A prática comum estabelece que, para assegurar que um projeto seja finalizado dentro do cronograma, cada tarefa deve ser entregue no prazo definido.
Normalmente se assume que o ótimo local (finalizar as tarefas dentro do prazo) irá levar ao ótimo global (finalizar o projeto dentro do cronograma). Todavia, mais importante que concluir tarefas nos prazos é terminar o projeto como um todo antes da data limite.
Como a realidade é incerta, o tempo de encerramento de cada tarefa não pode ser determinado de forma precisa, mas apenas estimado. Dessa forma, as estimativas de tempo de execução das tarefas contém uma margem de segurança - a ponto de, na maior parte dos projetos, aproximadamente metade do tempo estimado corresponder à margem de segurança.
Além disso, os responsáveis pela execução de cada etapa do projeto normalmente não têm interesse em finalizar as tarefas antes do prazo estipulado. Se o fizerem, podem ter o prazo diminuído em tarefas similares no futuro. E se o prazo de execução das tarefas diminui, sua credibilidade profissional fica em risco, pois aumenta a probabilidade de problemas imprevistos atrasarem o encerramento dos trabalhos. Assim, mesmo com altas margens de segurança em cada etapa do projeto, as tarefas acabam não sendo entregues com antecedência - as estimativas são transformadas em compromissos e se tornam "profecias auto-realizáveis".
Esse é um fenômeno tão comum que é conhecido como a Lei de Parkinson: "o trabalho expande-se de modo a preencher o tempo disponível para sua realização". Como resultado disso, a margem de segurança existente em cada etapa do projeto acaba sendo totalmente utilizada.
Se, de um lado, as tarefas tendem a ser entregues apenas na data limite, de modo que ganhos de tempo não são transferidos às etapas seguintes, de outro lado, qualquer atraso em uma tarefa acaba criando uma cadeia de dependência que prejudica a entrega do projeto no prazo.
Isso posto, torna-se necessária uma solução que diminua significativamente o tempo usado como margem de segurança (que é perdido), além de permitir que atrasos na execução das tarefas sejam compensados por ganhos obtidos na conclusão de etapas antes dos prazos.
É crença comum que um projeto terminará mais cedo quanto mais cedo for iniciado. No entanto, o aspecto mais importante é assegurar, primeiro, a disponibilidade dos recursos e sua capacidade de utilização.
Para tal, é necessário identificar o recurso mais importante para realização do projeto, em termos de utilização e disponibilidade (que consideraremos como a restrição, ou maior restrição, para entrega do projeto no prazo).
O segundo passo é programar a utilização desse recurso conforme a capacidade disponível.
No passo seguinte, subordinamos a realização das demais tarefas à programação dessa restrição (e não programamos tarefas para os demais recursos quando não houver necessidade, mesmo que eles fiquem ociosos).
Dessa forma, devemos nos fixar em terminar o projeto como um todo no prazo estabelecido, ao invés de nos preocuparmos com o prazo limite de cada tarefa.
Assim, a solução estabelece a retirada das margens de segurança de cada tarefa.
Feito isso, recomenda-se simplesmente cortar o tempo estipulado para o projeto pela metade! Desta forma, ninguém irá agir considerando que há tempo de sobra para execução das tarefas e desviando prioridades. E estaremos mais próximos do tempo real necessário para a execução eficiente do projeto (normalmente a margem de segurança incrustada nas etapas de um projeto é maior que 50%).

Corrente Crítica
Chamamos de Corrente Crítica o conjunto de tarefas interrelacionadas que apresentam o maior prazo de execução dentro do projeto. A margem de segurança, que outrora protegia cada etapa do projeto, deve ser agregada (reduzidamente) ao final da Corrente Crítica, protegendo a entrega do projeto no prazo estabelecido.
Atrasos em outras tarefas, que não as que fazem parte da Corrente Crítica, não devem afetar a entrega do projeto final. A margem de segurança, que outrora protegia essas tarefas, deve ser agregada e disponibilizada (de forma reduzida) antes que elas alimentem os recursos da Corrente Crítica.
Além disso, é necessário o monitoramento do trabalho realizado por cada recurso - não em termos de horas gastas em cada tarefa, mas acompanhando quando cada tarefa deverá ser concluída, de modo que possamos usar adequadamente a margem de segurança. Uma tarefa atrasada, que interfira diretamente na margem de tempo de segurança alocada ao final do projeto, deve ter alta prioridade.
Dessa forma, os projetos devem ser avaliados com base nos seguintes critérios:
* Percentual da Corrente Crítica que já foi completado;
* Percentual da margem de segurança ao final do projeto que já foi utilizada, em comparação com o percentual da Corrente Crítica que já foi realizado;
* Percentual que já foi utilizado da margem de segurança no final do projeto.
Como, tradicionalmente, os projetos são avaliados pelo percentual de trabalho completado, existe uma tendência em postergar tarefas que estejam apresentando problemas. Por isso, é comum verificarmos atrasos quando falta pouco para a conclusão do projeto.
Nessa metodologia, não importa quanto do projeto já foi realizado, mas sim qual a estimativa para sua conclusão. Como o tempo de conclusão do projeto é determinado pela realização das tarefas que compõem a Corrente Crítica, torna-se lógico avaliar o progresso do projeto conforme a realização dessas tarefas.

9 de jun. de 2015

Alíquota de ICMS Sobre Energia e Comunicações

ATENÇÃO:
Texto escrito em junho de 2015, na pendência de julgamento do Recurso Extraordinário 714.139-SC no Supremo Tribunal Federal (STF). Tal julgamento poderá implicar em alteração nas informações indicadas a seguir.

PORQUE AS ALÍQUOTAS DE ICMS SOBRE ENERGIA E COMUNICAÇÕES SÃO INCONSTITUCIONAIS
A Constituição Federal, em seu art. 155, §2º, inciso III, estabelece que o ICMS "poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços" - ao contrário do IPI, que deverá ser seletivo (art. 153, §3º, inciso I).
Do dispositivo constitucional se infere que, ao instituir o ICMS, os Estados e Distrito Federal devem optar em estabelecer uma alíquota única, ou, caso contrário, definir alíquotas diversas com base no princípio da essencialidade dos bens e serviços a serem tributados.
Ou seja, o "poderá ser seletivo" não significa que o estado ou distrito federal possa abrir mão desse critério, à sua total conveniência. Significa, isso sim, que, uma vez que opte pela diferenciação de alíquotas de ICMS, será necessário levar em conta a essencialidade das mercadorias e serviços (trata-se de um poder-dever).
Assim, é necessário analisar o regramento do ICMS em cada estado da federação. Em geral, verifica-se que os estados optam pela diferenciação de alíquotas, mas o fazem sem qualquer critério coerente, sem considerar a essencialidade de mercadorias e serviços. Trata-se, portanto, de nítida inconstitucionalidade.
E qual deveria ser a alíquota aplicável? Aí vai depender da análise de cada regramento estadual. Não me parece correto dizer que seria, sempre, a alíquota geral adotada em cada estado, como se tem divulgado.
Por exemplo, no Estado do Espírito Santo existe previsão de alíquota de 12% de ICMS no consumo de energia exclusivamente direcionado para "produção agrícola - inclusive irrigação" (art. 71, II, c, decreto nº 1.090-R). Estabelecer alíquota diferente para certos setores não dirime a ofensa ao texto constitucional, já que se trata de distinção não relacionada à essencialidade do bem taxado. Parece ser considerado o pressuposto duvidoso que maior gasto com eletricidade implicaria em aumento de produtividade na produção agrícola - mas, se esse é o caso, por que também não beneficiar do mesmo modo outros setores produtores de bens essenciais, como pecuária, vestuário etc.?
O problema é que o Recurso Extraordinário 714.139-SC deixa claro que a alíquota aplicável deve ser a geral (é o que foi pedido no processo original).

O QUE DEVE SER REQUERIDO
O objetivo da ação deve ser a redução da alíquota de ICMS em contas de energia e serviços de comunicação (telefone e internet) para um percentual coerente com o comando constitucional.
Para tal, o juiz deverá considerar a alíquota aplicável no respectivo regulamento de ICMS do estado. Por isso que é errado dizer que o judiciário estaria legislando, está apenas indicando a alíquota correta dentro do ordenamento existente.
Deve ser pedida a revisão dos últimos 5 anos, para apuração dos créditos (art. 168 do Código Tributário Nacional) - a ser realizada ao final do processo, em fase de liquidação (art. 286, II e III, lei 5.869/1973).
IMPORTANTE: Em caso de vitória dos contribuintes no Recurso Extraordinário 714.139-SC, existe a possibilidade que o Supremo Tribunal Federal estabeleça a revisão tarifária pro futuro, mantendo as alíquotas do passado. Desse modo, pode acontecer de só aqueles que ajuizaram ações antes da decisão venham a ter direito ao crédito tributário.

QUEM PODE REQUERER O CRÉDITO
No caso de pedido de crédito (indébito tributário) de ICMS nas contas de energia elétrica e serviços de comunicação, deve-se considerar o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial 1.299.303/SC), que considerou a legitimidade do "contribuinte de fato" (aquele sob o qual recai o ônus econômico, repassado pelas concessionárias) para ajuizar ações.
Portanto, os consumidores residenciais de energia elétrica podem ser autores dessa ação. A questão é averiguar se os valores a serem restituídos seriam compensatórios para acionar o judiciário, devido aos gastos com custas e advogado.
Também podem ser autores dessa ação as empresas que não se aproveitam dos créditos de ICMS nas contas de energia e comunicações (empresas no Simples, lojistas etc.) - necessário avaliar cada caso, diante da importância da questão indicada no tópico seguinte.

O PROBLEMA DA ASSUNÇÃO DO ENCARGO FINANCEIRO
No caso de empresas que não podem se creditar de ICMS nas contas de energia e serviços de comunicação, uma questão a ser observada com cuidado diz respeito à regra do art. 166 do Código Tributário Nacional:
Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.
Nesse caso, o advogado deverá analisar o setor de atuação da empresa e considerar, em sua argumentação, aspectos como os seguintes:
* Indicar a impossibilidade de crédito de ICMS em gastos com energia e comunicação, indicando a forma de tributação da empresa.
* Indicar a metodologia de cálculo de preços no setor e a influência de forças competitivas. Por exemplo, abordando a relação entre custos variáveis, fixos, mark-up, além da elastividade-renda da demanda e das forças de mercado (interação entre potenciais entrantes, fornecedores, compradores, produtos substitutos etc.), impedindo o integral repasse de custos.
* Questionar o art. 166 do CTN junto ao o art. 128 do mesmo código, que estabelece que a responsabilidade tributária a terceiro deve ser estabelecida nos termos da lei, e não por suposições econômicas. Não existe disciplina legal para que o ICMS seja repassado no cálculo de preços (translação jurídica do encargo), como é garantido na relação contratual entre o poder concedente e a concessionária de serviços públicos.
* Questionar a constitucionalidade do art. 166 do CTN.
* Por fim, questionar a atribuição de prova diabólica (ad impossibilia nemo tenetur), como, inclusive, prevê expressamente o art. 373 do Novo Código de Processo Civil.
Os artigos indicados abaixo podem ser úteis na formulação de argumentos em termos econômicos:

OUTROS ASPECTOS
O caso não é indicado para mandado de segurança, pois haveria necessidade de dilação probatória para apuração dos valores a serem restituídos (ou compensados, se houver tal possibilidade no regulamento do ICMS). Além disso, não se pode afirmar que haja direito líquido e certo, posto que a definição final sobre o assunto depende de julgamento no STF (seria confronto contra lei em tese, o que é vedado para mandado de segurança, conforme Súmula 266 do STF).
Também não parece recomendado o pedido de tutela antecipada, tendo em vista a incerteza sobre o julgamento do recurso extraordinário. De todo modo, a questão está sobrestada, pois trata-se de julgamento em recurso repetitivo.

29 de mai. de 2015

Uma Crítica ao Intervencionismo

Em Uma Crítica ao Intervencionismo, Ludwig von Mises apresenta uma análise econômica de bom senso, que se mostra atual, como contraponto à divulgação da ideologia intervencionista prevalecente.


O autor, primeiramente, resgata a ascensão do liberalismo como movimento contra os privilégios concedidos pelo estado - visão que, historicamente, vem sendo deturpada pelos inimigos da liberdade de mercado:
Os escritores anticapitalistas dão muita ênfase ao fato de que a economia clássica servia aos "interesses" da "burguesia", o que, supostamente explicaria seu êxito, levando, por sua vez, ao êxito da burguesia. Ninguém ousaria duvidar de que a liberdade alcançada pelo liberalismo clássico proporcionou o incrível desenvolvimento das forças de produção durante o último século. Mas infelizmente é um engano acreditar que, por se opor à intervenção, o liberalismo clássico tenha obtido uma aceitação mais fácil. Ele enfrentou a oposição de todos aqueles a quem a atividade febril do governo concedia proteção, favores e privilégios. O liberalismo clássico, não obstante, só pôde prevalecer em decorrência de ter sobrepujado intelectualmente os defensores do privilégio. Não havia novidade no fato de as vítimas do sistema de privilégios reivindicarem a extinção desse sistema. A grande novidade foi o enorme sucesso obtido pelas críticas ao sistema de privilégios, sucesso que deve ser atribuído exclusivamente ao triunfo das ideias do liberalismo clássico. (p. 34)
O autor também questiona a ideologia marxista, que procura estabelecer críticas maniqueístas ao capitalismo, mas sem apresentar alternativas viáveis (infelizmente, causa surpresa constatar que o pensamento marxista seja, ainda hoje, predominante em muitas universidades brasileiras).
(...) Durante as décadas de 1820 e 1830, na Inglaterra, fez-se uma tentativa no sentido de usar a economia para demonstrar que a ordem capitalista, além de injusta, não funciona satisfatoriamente. A partir daí, Karl Marx criou seu socialismo "científico". No entanto, mesmo que Marx e seus seguidores tivessem conseguido provar, com sucesso, suas teses contra o capitalismo, teriam, ainda, de provar que uma outra ordem social, como o socialismo, seria melhor do que o capitalismo. E isso não foram capazes de fazer. Não conseguiram nem mesmo provar que uma ordem social pode, de fato, ser fundamentada na propriedade pública dos meios de produção. Pelo simples fato de rejeitarem ou deixarem de lado qualquer análise das "concepções utópicas" do socialismo, eles, evidentemente, não resolveram nada. (p. 35)
É certo que as tentativas de implantação do socialismo resultaram - e ainda resultam - em retumbantes fracassos, como esperado. Destaca o autor:
O socialismo não fracassou por causa da resistência ideológica - até hoje, a ideologia dominante é a socialista. Fracassou pela sua inviabilidade. À medida que se tomava consciência de que, quanto mais distante se ficava da ordem de propriedade privada, mais reduzida ficava a produtividade da mão de obra, e consequentemente mais aumentava a pobreza e a miséria, tornou-se necessário não só parar a corrida para o socialismo, mas também anular algumas das medidas socialistas já tomadas. Até os soviéticos tiveram de ceder. Não continuaram a socialização da terra: limitaram-se a distribuir as terras à população rural. No comércio interno e externo, substituíram o socialismo puro pela "nova política econômica". Entretanto, a ideologia não acompanhou esse recuo. Agarrou-se, obstinadamente, às concepções de décadas atrás e procurou atribuir os fracassos do socialismo a todas as causas possíveis, excetuando a única verdadeira: sua inviabilidade básica. (p. 87)
Mises já percebia algo que ainda se verifica nos tempos de hoje: o uso do "capitalismo" como bode expiatório, diante do fracasso na adoção de soluções calcadas em teorias inconsistentes, nos erros políticos, nas falhas decorrentes da intervenção estatal na economia etc. - em detrimento da ação dos indivíduos e grupos responsáveis por esses fracassos.
Hoje, é comum culpar o capitalismo por tudo o que causa desagrado. Aliás, quem sabe o que nos poderia acontecer se não fosse o 'capitalismo'? Quando grandes sonhos não se realizam, o capitalismo é imediatamente acusado. Esse procedimento, possível na política partidária, deve ser evitado na discussão científica. (p. 74)
Isso posto, devemos analisar quais são as implicações do movimento intervencionista/ estatista que, dadas algumas variações, prevalece desde os tempos de Mises. A visão do autor indica que o crescimento da intervenção do estado na sociedade resulta na mesma situação de fracasso que caracteriza o socialismo:
O intervencionismo procura manter a propriedade privada dos meios de produção. No entanto, ordens autoritárias, especialmente proibições, restringem as ações dos proprietários. Se essas restrições fizerem com que todas as decisões importantes sejam tomadas de forma autoritária, se o motivo não é o lucro dos proprietários, capitalistas e empresários, mas razões de Estado, o que vai decidir como e o que deve ser produzido, teremos, então, o socialismo, mesmo que se continue a empregar a expressão “propriedade privada”. Othmar Spann está inteiramente certo quando diz que tal sistema é “um sistema de propriedade privada em sentido formal, mas socialismo na sua essência”. (p. 17)
Não obstante, o papel do estado deve ser compreendido na interação das forças políticas que o compõem, que o influenciam, de modo que o efeito prático da intervenção estatal é bastante distinto do sonhado pelos que ainda acreditam na ideologia socialista. Na verdade, a intervenção do estado na economia visa proteger grupos econômicos de maior força, e não defender um suposto bem-estar geral. O autor destaca o seguinte exemplo:
Hoje em dia, o problema pode ser visto desta forma: fazendeiros e produtores de laticínios unem-se para provocar a subida do preço do leite. Vem, então, o Estado, interessado no bem-estar social, tranquilizar a todos colocando o interesse comum acima do interesse particular, o ponto de vista da economia pública acima do interesse da iniciativa privada. Dissolve o “cartel do leite”, estabelece preços máximos e enquadra criminalmente os violadores das regras estabelecidas pelo intervencionismo. Como o leite não fica tão barato quanto os consumidores pretendiam, as críticas se voltam contra as leis, que não são suficientemente rigorosas, contra as medidas, ainda não muito severas, de combate ao não cumprimento das leis. Como é muito difícil lutar contra os interesses pelo lucro de certos grupos de pressão, que são prejudiciais ao público, faz-se necessário reforçar e executar as leis implacavelmente, sem quaisquer considerações. (p. 29-30)
Além disso, não devemos deixar de considerar a burocracia, as dificuldades, os entraves inerentes à constante regulação estatal e sua estrutura, que acabam por prejudicar o desenvolvimento econômico (o que não é difícil de observar na prática).
Ao contrário do aumento da intervenção do estado na economia, mostra-se socialmente benéfica a defesa da livre atuação dos agentes econômicos - em síntese, a defesa da concorrência, não do estatismo.
É a concorrência que traz, em si, a necessidade de eficiência, de inovação, enquanto a intervenção estatal tende à criação de privilégios, de proteções inerentes à concentração do poder político.
(...) Numa economia capitalista, os meios de produção estão sempre nas mãos do administrador mais capaz, isto é, aquele que é capaz de usá-los mais economicamente para o atendimento das necessidades do consumidor. Uma empresa pública, entretanto, é administrada por homens que não enfrentam as consequências de seu sucesso ou fracasso. (p. 138)
Dessa forma, Mises conclui pela defesa do liberalismo como meio mais eficaz para o maior desenvolvimento econômico e, por conseguinte, social:
O conhecimento econômico leva necessariamente ao liberalismo. Por um lado, demonstra que há apenas duas possibilidades para o problema de propriedade em uma sociedade baseada na divisão de trabalho: propriedade privada ou pública dos meios de produção. O chamado sistema intermediário da propriedade “controlada” ou é ilógico, porque não conduz ao objetivo pretendido e não produz nada a não ser uma ruptura do processo de produção capitalista, ou acaba conduzindo à socialização total dos meios de produção. Por outro lado, prova o que apenas recentemente foi aprendido com clareza: uma sociedade fundamentada na propriedade pública não é viável, uma vez que não permite previsão monetária e, consequentemente, não permite a ação econômica racional. O conhecimento econômico, portanto, representa um obstáculo às ideologias socialista e sindicalista que prevalecem em todo o mundo. E isto explica a guerra movida em toda parte contra a economia e os economistas. (p. 76)

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
MISES, Ludwig von. Uma Crítica ao Intervencionismo. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. Disponível em: <http://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=55>. Acesso em: 29 mai. 2015.