O Recurso Extraordinário 714.139-SC, sem data de
julgamento no Supremo Tribunal Federal (quando escrito este texto), discute a
adequação de alíquota do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de
Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e
Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) incidente sobre energia elétrica frente
aos princípios da seletividade e essencialidade.
No entanto, a discussão, que se originou em Santa
Catarina, pretende reduzir o ICMS incidente sobre energia elétrica para o nível
da alíquota geral (de 25% para 17%).
Considerando o Regulamento de ICMS do Estado do
Espírito Santo, analiso abaixo que poderia ser defendida uma alíquota inferior
à geral, com base nos princípios da seletividade e isonomia - análise que pode
ser pertinente junto aos regramentos de outros estados.
I. Sobre
seletividade e essencialidade na definição de alíquota de ICMS
A Constituição Federal, em seu art. 155, §2º, inciso
III, estabelece que o ICMS "poderá ser seletivo, em função da
essencialidade das mercadorias e dos serviços" - ao contrário do IPI (art.
153, §3º, inciso I), que deverá ser seletivo.
Do dispositivo constitucional se infere que, ao
instituir o ICMS, os Estados e Distrito Federal devem optar em estabelecer uma
alíquota única, ou, caso contrário, definir alíquotas diversas com base no
princípio da essencialidade dos bens e serviços a serem tributados.
Ou seja, o "poderá ser seletivo" não
significa que o Estado ou Distrito Federal possa abrir mão desse critério, à
sua total conveniência. Significa, isso sim, que, uma vez que se opte pela
seletividade, esta deverá levar em conta a essencialidade das mercadorias e
serviços (trata-se de um poder-dever).
Caso contrário, e isso não faria sentido,
tornar-se-ia expressão inútil o comando constitucional do art. 155, §2º, inciso
III, que determina que a seletividade deve se dar "em função da
essencialidade das mercadorias e dos serviços".
No caso do Estado do Espírito Santo, o Decreto nº
1.090-R (Regulamento do ICMS-ES) estabelece, em seu Capítulo VIII (arts. 71 e
72), diferentes alíquotas para o tributo, do que se infere a opção pelo
princípio da essencialidade, em acordo com o preceito constitucional.
Isso posto, passemos a analisar o critério de
seletividade adotado no referido regramento:
A análise dos artigos 71 e 72 do Decreto nº 1.090-R
evidencia que a distinção das alíquotas de ICMS incidentes sobre produtos e
serviços foi estipulada com algum critério discricionário, desconhecido, sem
nenhuma relação com o princípio da essencialidade.
Desnecessário destacar que energia elétrica é
essencial para a vida moderna, para assegurar a dignidade humana. Mostra-se
pouco provável o convívio em sociedade sem a disponibilidade de iluminação,
utilização de equipamentos e serviços necessários ao trabalho, à fabricação de
produtos, à segurança, ao consumo etc., independentemente da quantidade
consumida. Não sem razão, a lei 7.783/1989, em seu art. 10, inciso I, destaca
os serviços de distribuição de energia elétrica como essenciais.
Assim, fica evidente a afronta ao mandamento
constitucional quando observarmos que itens cuja essencialidade nos tempos
modernos é indiscutível, como energia e comunicação, são taxados com alíquota
de 25% no Regulamento do ICMS-ES (RICMS-ES), enquanto itens notadamente pouco
essenciais, até supérfluos, como pedra de mármore, bebidas alcoólicas, fumo,
jóias, entre outros, têm alíquota igual ou menor.
A tabela seguinte é exemplificativa e elucidativa de
tais distorções:
II. Qual
deveria ser a alíquota de ICMS sobre energia elétrica
As operações com energia elétrica no Estado do
Espírito Santo são taxadas à alíquota de 25% de ICMS (art. art. 71, III,
Decreto nº 1.090-R). Não obstante, é prevista alíquota de 12% de ICMS no
consumo de energia exclusivamente direcionado para produção agrícola (art. 71,
II, c) e para consumidores que gastem até 50kWh por mês (art. 71, II, d).
Tal distinção está longe de caracterizar observância
ao princípio da essencialidade. Antes o contrário, configura um subsídio ao
setor agrícola (cuja aplicabilidade é discutível, ao relacionar consumo de
energia com produtividade) e, à primeira vista, parece observar a capacidade
contributiva do consumidor de menor renda.
No entanto, não se mostra coerente tal diferenciação.
De um lado, o estado incentiva o gasto de energia no
setor agrícola, aparentemente relacionando o consumo energético com o aumento
da produtividade. Se isso é verdadeiro, por que não utilizar o mesmo critério
para outros setores? Não seria um estímulo à economia e, por extensão, à
arrecadação de ICMS?
De outro lado, o estado inibe o consumidor de fazer
uso de um bem essencial para a vida moderna, para sua inclusão social, ao
estabelecer um patamar diminuto de
consumo de energia elétrica com alíquota de ICMS reduzida para o consumidor de
baixa renda, de apenas 50kWh por mês.
A esse respeito, comparando informações fornecidas
pela Aneel (ver AQUI) e pelo IDEC
(ver AQUI),
observamos que uma geladeira comum (modelo novo, eficiente), mais uma televisão
pequena (14") e um ferro de passar roupa gastariam aproximadamente o
equivalente a 41,4kWh. O consumidor teria que tomar cuidado quanto ao uso de
lâmpadas, além de não utilizar nenhum outro eletrodoméstico, para se manter
dentro do limite de 50kWh. E como ficaria, nessa situação, o consumidor de
baixa renda com filhos? Não estaria em situação ainda pior que aquele que vive
sozinho? De certo que esse critério não atende o princípio da isonomia e muito
menos o da capacidade contributiva.
Tais situações apenas evidenciam a anomalia que
constitui a diferenciação de alíquotas de ICMS no Estado do Espírito Santo.
Além de duvidosa - pois o valor de R$/kWh (reais por quilowatt-hora) varia
conforme faixa de consumo, de acordo com regulação da Aneel - tal distinção em
nenhum momento leva em conta o preceito constitucional da essencialidade.
Desse modo, diante do desrespeito à Constituição
Federal, e levando em conta que o Estado do Espírito Santo optou pela adoção da
seletividade sem observar a essencialidade na definição das alíquotas
aplicáveis ao ICMS, cabe ao Poder Judiciário corrigir tal distorção.
Assim procedendo o Judiciário não estará legislando
positivamente, não estará violando o princípio da legalidade tributária, mas,
isto sim, corrigindo uma distorção, ao indicar a alíquota aplicável prevista no
próprio Regulamento do ICMS..
E nada mais justo que atribuir ao consumo de energia
elétrica a alíquota de 12%, já prevista para o setor agrícola (art. 71, II, d).
Manter alíquota distinta para outros contribuintes não dirime a ofensa ao texto
constitucional, já que estabelece distinção não relacionada à essencialidade do
bem energia elétrica.
Note-se que o estado não está diretamente
beneficiando o fornecimento de alimentos (esses continuam sendo taxados com
alíquota de 17% e 12%, conforme operação interna ou interestadual), mas o
consumo "na produção agrícola, inclusive de irrigação" (art. 71, II,
d, RICMS-ES) - por que não vestuário, por que não outros setores de bens
essenciais?
A concessão de tal privilégio para apenas uma
atividade, aparentemente com base no pressuposto que maior gasto com energia
implica em maior produtividade, constitui-se em ofensa ao princípio da
isonomia, em concessão de privilégio odioso, em afronta direta ao princípio
constitucional de que todos são iguais perante a lei (art. 5º, art. 19, inciso
III e art. 150, inciso II, da Constituição Federal).
O princípio da seletividade não deve permitir
distinção individual entre contribuintes, pois sua incidência é específica a
produtos e serviços. Tal é o comando do art. 153, §3º, inciso I, e do art. 155,
§2º, inciso III, do texto constitucional.
Portanto, a adoção da alíquota comum do Regramento do
ICMS-ES nas operações internas (17%), embora bem-vinda aos contribuintes, não
corresponderia à efetivação da justiça, posto que ainda manteria uma distorção
não justificável ao princípio da essencialidade.