O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)
é a poderosa estrutura governamental responsável, no Brasil, por assegurar a
livre concorrência, agindo no sentido de reprimir "o abuso do poder
econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
aumento arbitrário dos lucros", conforme §4º do art. 173 da Constituição
Federal.
Dentre tais atribuições, está o Cade naturalmente
incumbido de inibir o conluio empresarial para regulação de preços. Afinal,
como destaca Carvalho (2013):
O cartel é tido como uma conduta praticada por
particulares que se reúnem com o intuito de sustar a livre concorrência ou
restringi-la e embaraçar a liberdade de escolha do consumidor, ocasionando um
atraso no setor cartelizado, uma vez que não há concorrentes e a vontade de
inovar torna-se cada vez mais imprópria, já que a presença de um mercado
consumidor efetivo e presente garante os lucros desses empresários.
E o próprio Cade nos adverte dos efeitos perniciosos
dos cartéis:
O poder de um cartel de limitar artificialmente a
concorrência traz prejuízos também à inovação, por impedir que outros
concorrentes aprimorem seus processos produtivos e lancem novos e melhores
produtos no mercado. Isso resulta em perda de bem-estar do consumidor e, no
longo prazo, perda da competitividade da economia como um todo. Segundo a
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2002), os cartéis
geram um sobrepreço estimado entre 10 e 20% comparado ao preço em um mercado
competitivo, causando perdas anuais de centenas de bilhões de reais aos
consumidores. (Cade, 2009)
Mas será isso verdade?
Considero que a análise econômica baseada no equilíbrio,
que fundamenta a teoria econômica tradicional e o direito concorrencial, não
expressa a realidade, não identifica corretamente as forças de mercado. Entendo
com mais adequadas as análises que consideram a dinâmica da mudança, a busca de
oportunidades de negócio, a "destruição criadora" (como apontado por
Joseph Schumpeter) e o "processo de mercado" (como apontado por
Isarel Kirzner, entre outros autores). Não obstante, não é preciso se
aprofundar na teoria econômica. Bastam os seguintes questionamentos:
Se o cartel é formado por um grupo de empresas para
aumentar preços, devemos intuir que os preços mais altos atrairiam novos
concorrentes. Ora, a atuação da concorrência naturalmente levaria os preços a
cair. O efeito de um cartel seria, assim, momentâneo - desde que fosse
assegurada a atuação da concorrência.
Qual seria, então, o fundamento do Cade ao declarar
"o poder de um cartel de limitar artificialmente a concorrência"? O
cartel teria poder de polícia? De coação? Impediria o acesso ao mercado pelo poder
da violência? Se for o caso, podemos nos valer do direito criminal, não haveria
necessidade de toda a estrutura administrativa do Cade.
Mas o Cade vai além e diz que um cartel "traz
prejuízos também à inovação, por impedir que outros concorrentes aprimorem seus
processos produtivos e lancem novos e melhores produtos no mercado"? Como
um cartel faria isso? Mesmo se tivesse o controle total sobre um determinado
mercado, como poderia impedir que uma empresa, de fora desse mercado, inovasse,
lançasse um produto substituto, um novo processo tecnológico etc.?
Na atuação investigativa de cartéis, destaca-se a
realização de acordos de leniência, que seriam uma espécie de delação premiada
(Araújo, 2013, apud Carvalho, 2011).
Porém, na junção dos elementos que caracterizariam um
cartel, uma das principais questões diz respeito à demarcação do chamado
"mercado relevante". Tal conceito diz respeito à delimitação de um
conjunto, de um limite de mercado, no qual será considerado se determinada
operação teria implicações contrárias à chamada "defesa da
concorrência".
O conceito é considerado pelo Cade da seguinte forma:
O mercado relevante é a unidade de análise para
avaliação do poder de mercado. Define a fronteira da concorrência entre as
firmas. A definição de mercado relevante leva em consideração duas dimensões: a
dimensão produto e a dimensão geográfica. A idéia por trás desse conceito é
definir um espaço em que não seja possível a substituição do produto por outro,
seja em razão do produto não ter substitutos, seja porque não é possível
obtê-lo.
Assim, um mercado relevante é definido com sendo um
produto ou grupo de produtos e uma área geográfica em que tal(is) produto(s) é
(são) produzido(s) ou vendido(s), de forma que uma firma monopolista poderia
impor um pequeno, mas significativo e não-transitório aumento de preços, sem
que com isso os consumidores migrassem para o consumo de outro produto ou o
comprassem em outra região. Esse é chamado teste do monopolista hipotético e o
mercado relevante é definido como sendo o menor mercado possível em que tal
critério é satisfeito. (Cade, 2007)
Além da determinação do "mercado
relevante", cabe considerar que a lei 12.529/11, em seu art. 36, traz um
considerável rol de práticas que seriam atentatórias à livre concorrência.
Não obstante a indicação do que seriam práticas
caracterizadoras de infração à ordem econômica, o art. 36 deixa claro que a
responsabilização dos agentes se dá "independentemente de culpa". E
não é só isso, os supostos atos de infração à ordem econômica devem ser
considerados "sob qualquer forma manifestados" e considerados, quanto
a seus efeitos, "ainda que não sejam alcançados".
Ou seja, a lei 12.529/11 pode ser considerada uma
espécie de "super direito penal do inimigo", já que a
responsabilização não se dá apenas pelo dolo, nem mesmo apenas pela culpa, mas
"independentemente de culpa" - o que é certamente inconstitucional e,
curiosamente, pouco discutido.
Mais ainda, a responsabilização dos agentes, mesmo
sem dolo, mesmo sem culpa, deve ser considerada "ainda que não sejam
alcançados" os objetivos supostamente pretendidos. O Cade assume, assim,
os contornos de uma divisão de "polícia pré-crime", como no filme
Minority Report.
O comentário de Pires (2009), realizado antes da lei
12.529/11, ainda se mostra atual e relevante:
(...) A boa doutrina nos ensina que a lei há de
estabelecer para o administrado uma conduta negativa (deverá abster-se do ato,
tal como "matar alguém") ou positiva (deverá produzir o ato, tal como
"votar"). Bizarra é também a previsão de que a infração independa de
culpa. Ora, um delito há de ser cometido com dolo ou culpa. Com dolo, se foi
cometido propositalmente, ou se o agente conhecia os potenciais efeitos do seu
ato e os desprezou ao consumá-lo; com culpa terá agido se o cometeu em virtude
de imperícia, imprudência ou negligência.
(...)
Mas então temos um problema à frente: se a pessoa
(física ou jurídica) não agiu com negligência, isto é com culpa, então agiu com
diligência, a saber: preveniu-se, anteviu e evitou, razoavelmente, a situação
que o legislador denomina de "atos de qualquer forma manifestados", o
que reduz estes atos, na verdade, a meras situações de fato.
Vejamos agora a expressão "que tenham por objeto
ou que possam produzir os seguintes efeitos". A oração "que tenham por
objeto" denuncia a vontade do acusado em produzir os efeitos, o que
poderia remeter ao caso do dolo, mas a expressão seguinte "ou que possam
produzir os seguintes efeitos", de pronto já a revoga, tornando-a
irrelevante. Isto significa que o cidadão pode ser indiciado tanto sem
"pretender" quanto sem "prever" que os efeitos sejam
produzidos. Ainda, coloca os "efeitos" no campo da mera
possibilidade, ao estabelecer que os atos "possam" vir a ser
produzidos, aqui autorizando CADE a acusar alguém em virtude de uma mera
"tese" econômica, e que enfatiza esta disposição com a parte final:
"ainda que não sejam alcançados" (...) (Pires, 2009)
Além disso, o §2° do mesmo art. 36 presume a
caracterização de posição de mercado a capacidade de controle ou coordenação de
20% do mercado, percentual esse que pode ser desconsiderado pelo Cade conforme
seus critérios.
Desse modo, basta uma leitura simples do art. 36 da
lei 12.529/11 para percebermos o poder ditatorial atribuído ao Cade. Através
desse órgão, o estado assume o poder de total controle da economia.
Basta considerar que o próprio conceito de
"mercado relevante", divulgado pelo Cade, é irrelevante frente ao
poder legal que lhe é conferido. Bastam revisões ou mesmo pequenas alterações
de conceito e não haverá choque com a lei 12.529/11 (veja que o conceito de
"mercado relevante" acima entra em contradição com o §2° do art. 36
lei 12.529/11).
Assim, é curioso perceber como toda a linguagem de
defesa da concorrência, de combate à concentração econômica, é utilizada com
propósitos totalmente distintos. Livre mercado, concorrência, não é controle
estatal. Controle estatal é, e sempre será, intervenção. Não importa o
linguajar utilizado para escamoteá-la.
Pode parecer estranho ao leitor que um dos mais
importantes controles governamentais sobre as competições eficientes e,
portanto, concessões de quase-monopólio, são as leis antitruste. Poucas
pessoas, economistas ou não, questionaram o princípio das leis antitruste,
particularmente agora que constam, há alguns anos, nos códigos legais. Como é
verdade para muitas outras medidas, a avaliação das leis antitruste não
procedeu de uma análise da natureza ou das consequências necessárias, mas de
uma reação superficial quanto aos propósitos anunciados. A crítica principal
dessas leis é que 'não foram longe o bastante'. Alguns dos mais incisivos ao
proclamar a crença no 'livre mercado' têm sido mais clamorosos em exigir
severas leis antitruste e a 'quebra de monopólios'. Mesmo os economistas mais
'direitistas' têm criticado, com cautela, certos procedimentos antitruste, sem
ousar atacar o princípio das leis per se. (Rothbard, 2012, p. 80-81)
Diante do exposto, qual a relevância de
identificarmos os critérios básicos de análise de práticas restritivas? Pouca
ou nenhuma. Mesmo que, em determinada operação, se tome o cuidado de não
caracterização das infrações indicadas na lei 12.529/11, não há qualquer
segurança jurídica a respeito. A própria lei assegura ao Cade amplo poder
discricionário para definir casos relevantes de apreciação.
E, se alguém duvida disso, basta considerar que
fusões caracterizadoras de poder de mercado foram aprovadas com restrições que
não mudaram a configuração de concentração que supostamente o Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência visaria combater (vide casos Ambev e
Brasil Foods, por exemplo). Ou basta considerar a clara alteração de parâmetros
na análise de fusão de empresas de distribuição de asfalto (Greca
Distribuidora, Betunel e Centro Oeste Asfaltos), cujo caso não se enquadrava
nos critérios objetivos da lei, restando os subjetivos (Duarte, 2014).
Por fim, a questão não diz respeito a se o Cade
utiliza todos os poderes discricionários possibilitados pela lei ou se
estabelece critérios justos de análise. O problema é que esse órgão permite ao
estado estabelecer amplo controle sobre a economia. Diz-se que se trata de
defesa da concorrência. Está claro que, por trás desse linguajar, encontra-se
apenas o poder de regulação estatal e não a defesa da livre concorrência.
Referências consultadas:
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