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31 de dez. de 2015

O Caso do Cartel da Areia

A partir de uma escuta telefônica realizada pela Polícia Federal, em 2005, detectou-se um suposto cartel composto por três mineradoras de areia e uma empresa de consultoria, atuando na região da Grande Porto Alegre.
O caso levou o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) a aplicar multas que chegaram a 22,5% do faturamento das empresas em 2007.
Deveria ser desnecessário dizer que multa incidente sobre o faturamento é notadamente confiscatória, já que incide sobre impostos, insumos e custos diversos, sendo mais adequado ao bom senso a aplicação de multas sobre resultados, sobre lucro (não é esse o objetivo do cartel?).
Nesse caso, para caracterizar o "mercado relevante" e constatar a existência de cartel, o Cade levou em conta os seguintes fatores:
1) Que existe barreira à entrada no mercado, já que a mineração só é permitida mediante licença concedida pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM);
2) Que haveria uma limitação de comercialização em raio de 100km, devido a custos de transportes, inviabilizando a compra do produto de outros mercados.
Claramente se verifica que o primeiro fator é uma restrição estatal. Isso será verificado adiante.
Já o segundo fator, limite geográfico de comercialização, não parece relevante por si só. Trata-se de restrição à compra do produto de outros mercados, mas nada diz sobre a disponibilidade do recurso dentro do espaço considerado. Veremos adiante que esse fator está diretamente relacionado ao primeiro.


Decisão proferida pelo CADE no caso do Cartel da Areia
No caso do chamado "Cartel da Areia" (processo administrativo 08012.000283/2006-66), três mineradoras foram condenadas por suposta combinação de preços, com base em análise de custos proposta por empresa de consultoria contratada.
Antes de mais nada, a condenação da consultoria que realizou o estudo de preços parece absurda. Afinal, a mera realização de um estudo indicando otimização de preços e custos (levava em conta, também, a distância das jazidas ao mercado) não enseja a realização de controle de preços. Isso só seria teoricamente possível se a consultoria fosse, na verdade, a controladora das empresas, com poder total de comando. E, mesmo que fosse o caso, seria relevante considerar, ainda, os elementos para efetivação desse poder - a empresa de consultoria foi condenada com base no poder discricionário e absoluto concedido pelo art. 36 da lei 12.529/11.
Já as empresas mineradoras foram condenadas por indícios de combinação de preços e diante do fato de, juntas, deterem mais de 47% de participação de mercado.
Nesse sentido, é curioso que o voto do relator reconheça, conforme defesa das empresas, a existência de 170 empresas autorizadas pelo DNPM para extração de areia no Rio Grande do Sul. Não obstante, o douto relator entende "por óbvio, a grande quantidade de empresas com autorização do DNPM não afasta o fato de as representadas serem responsáveis por aproximadamente 50% da areia comercializada no Estado e por quase a totalidade da areia extraída no mercado relevante".
Mas isso não parece nada óbvio!
Se existiam 170 empresas autorizadas à mineração, por que elas não conseguiriam concorrer com as 3 formadoras do cartel? O processo não indica nenhum impedimento tecnológico. Assim, se as empresas do cartel praticavam preços mais altos, por que as outras, que não faziam parte do cartel (e supostamente praticariam preços "de mercado") não conseguiam concorrer com elas? Estaria o DNPM concedendo licenças a empresas não qualificadas para competição, cujo objetivo seria apenas locar seu direito para outras empresas? Se for esse o caso, por que o DNPM não revogou essas licenças ou concedeu licenças para empresas capacitadas?
Portanto, pelo menos no que diz respeito às demais empresas (seja lá quantas forem), com licença do DNPM e não integrantes do suposto cartel, não pareceu existir impedimento para atuação no mercado.
(...) Se a entrada no mercado for livre, as empresas em conluio podem, ao procurar manter seus altos preços, estar involuntariamente atraindo novos concorrentes, os quais revelarão a verdade: que preços mais baixos são sustentáveis.  Da mesma maneira, caso não ocorra a entrada de nenhum concorrente, tais empresas em conluio podem estar demonstrando que a estrutura de custos realmente justifica os atuais preços altos como sendo os mais baixos possíveis em um mundo concorrencial. (Kirzner, 2013)
Vê-se, claramente, que a indicação de participação de mercado, por si só, não é relevante. A concentração de mercado pode advir do sucesso empresarial (beneficiando os consumidores, não haveria mal nisso) ou da concessão de direitos de exclusividade. E direitos de exclusividade duradouros dependem da participação do estado.
Como, então, essas três empresas conseguiram formar um cartel, obtendo vantagens de preço sem atrair o interesse da concorrência?
O próprio relator do voto condutor no Cade admite que a concessão de licenças é uma grande restrição nesse mercado. Porém, simplesmente desconsidera o papel do estado na formação do cartel.
Possivelmente o controle das licenças não é apenas uma restrição ao mercado. É o próprio fator causador do cartel. Só isso explicaria que, supostamente, três empresas possam praticar preços combinados sem atrair o interesse da concorrência (que o processo do Cade admite ser existente, mas não infere o porquê de seu imobilismo).
Diga-se de passagem que não há nada de novo no fato do controle de acesso a mercados, por parte da atuação estatal, resultar na formação de cartéis e monopólios:
Os lucros de monopólio nunca podem ser duradouros, já que lucros são efêmeros, e todos acabam por reduzir-se a um retorno de juros uniforme. No longo prazo, os retornos de monopólio são imputados a algum fator. Qual é o fator que está sendo monopolizado neste caso? É óbvio que este fator é o direito de entrar na indústria. No livre mercado, esse direito é ilimitado para todos; aqui, no entanto, o governo concedeu privilégios especiais de entrada e venda, e são esses privilégios especiais ou direitos que são responsáveis pelo ganho monopolístico extra. Por isso o monopolista recebe um ganho de monopólio, não por ser dono de algum fator produtivo, mas pelo privilégio especial concedido pelo governo. E este ganho não desaparece no longo prazo como ocorre com os lucros; ele é permanente, dura por todo o tempo em que o privilégio permanecer e as avaliações do consumidor continuarem como estão. (Rothbard, 2012, p. 60)
A situação fica mais clara se considerarmos reportagem do site jornalístico Sul21, que indica a atuação do DNPM restringindo a área de extração mineral, além da falta de recursos governamentais para agilizar o processo de concessão de licenças - e aí já entra na história outro órgão estatal, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Referida reportagem traz indício sobre qual seria a origem do problema de falta de concorrência no mercado de areia de Porto Alegre:
“Convenhamos, a extração de areia está longe de ser o maior problema ambiental do Guaíba”, diz o superintendente do DNPM, que não entende porque o órgão ambiental do Estado [Fepam] demora tanto para fazer o zoneamento ecológico-econômico que pode permitir (ou não) a retomada da extração de areia na mais antiga jazida subaquática de Porto Alegre. (Hasse, 2011)
E mais, a atuação estatal não estaria apenas inibindo a atuação direta da concorrência (entrada de competidores e regularização de jazidas), mas também a própria adoção de alternativas tecnológicas para suprir o mercado. É o caso, por exemplo, da utilização da areia resultante da dragagem hidroviária:
Um dos adeptos desse casamento é o atual diretor da Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH), Vanderlan Vasconselos, advogado disposto a buscar na extração de areia uma solução para desassorear os canais de navegação do Lago Guaíba e da Laguna dos Patos. Aventada em passado remoto, no entanto, a possível parceria areeiros-hidrovias foi soterrada quando se concluiu que a amortização de uma atividade pela outra redundaria na redução no orçamento do órgão público encarregado de contratar as dragagens. (Hasse, 2011, grifo meu)
Claro está, portanto, que se não consideramos apenas uma análise superficial, de empresas envolvidas em "mercado relevante" (como é procedimento do Cade), podemos identificar, a partir da própria observação dos aspectos concorrenciais, a existência de disputas de poder que ensejam a formação de cartéis. E, normalmente, por trás dessas disputas, encontramos a atuação estatal (afinal, é o estado que detém o poder de polícia, capaz de impedir a atuação das forças da concorrência).
Em complemento, o caso também poderia estar relacionado à disputa entre os produtores de areia e seus compradores. Destaque-se que o processo indica que a areia extraída era quase totalmente direcionada para a construção civil. Não obstante, o processo não considera sobre o poder dos compradores, dentre outros aspectos. Ressalte-se que seria adequado uma análise concorrencial observar pelo menos as cinco forças competitivas indicadas por Michael Porter: (1) poder de negociação dos fornecedores; (2) poder de negociação dos compradores; (3) produtos substitutos; (4) potenciais entrantes e (5) concorrentes de mercado (Porter, 1991).
Aliás, é interessante notar que a defesa de uma das empresas relatou a oitiva de testemunhas de empresas concorrentes, no inquérito policial que deu origem ao processo. De fato, não devemos ser ingênuos em deixar de considerar que há sempre muitos interesses envolvidos em casos assim, não só aqueles dos participantes do suposto cartel. Normalmente não se trata de uma luta pela justiça, mas de uma luta pelo poder.

Referências consultadas:

BRASIL. Lei n° 12.259 de 30 de novembro de 2011. Disponível em: <http://tinyurl.com/nhqdlqs>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Cade.  Cartel de Extração de Areia (PA nº 08012.000283/2006-66). Voto do conselheiro-relator Paulo Furquim de Azevedo, 17 dez. 2008. Disponível em: <http://tinyurl.com/ljeoz8e>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Combate a Cartéis e Programa de Leniência. 3° ed., 2009. Disponível em: <http://tinyurl.com/hgvll6l>. Acesso em: 12 fev. 2015.

BRASIL. Ministério da Justiça. Guia Prático do CADE: a defesa da concorrência no Brasil. 3° ed., 2007. Disponível em: <http://tinyurl.com/zye4qpd>. Acesso em: 12 fev. 2015.

HASSE, Geraldo. Multa ao cartel da areia no rio Jacuí empoçou na Justiça. Sul21, 22 ago. 2011. Disponível em: <http://tinyurl.com/hnfguwx>. Acesso em : 12 fev. 2015.

KIRZNER, Israel M. A Irresistível Força da Concorrência de Mercado. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 12 abr. 2013. Disponível em: <http://tinyurl.com/hlg2osp>. Acesso em: 12 fev. 2015.

PIRES, Klauber Cristofen. O Estado e os Carteis - faça o que digo, não o que faço. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 11 mai. 2011. Disponível em: <http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=976>. Acesso em: 12 fev. 2015.

PORTER, Michael. Estratégia Competitiva: técnicas para análise da concorrência e indústria. 8. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

ROTHBARD, Murray N. Governo e Mercado: a economia da intervenção estatal. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2012.

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