A partir de uma escuta telefônica realizada pela
Polícia Federal, em 2005, detectou-se um suposto cartel composto por três
mineradoras de areia e uma empresa de consultoria, atuando na região da Grande
Porto Alegre.
O caso levou o Cade (Conselho Administrativo de
Defesa Econômica) a aplicar multas que chegaram a 22,5% do faturamento das
empresas em 2007.
Deveria ser desnecessário dizer que multa incidente
sobre o faturamento é notadamente confiscatória, já que incide sobre impostos,
insumos e custos diversos, sendo mais adequado ao bom senso a aplicação de
multas sobre resultados, sobre lucro (não é esse o objetivo do cartel?).
Nesse caso, para caracterizar o "mercado
relevante" e constatar a existência de cartel, o Cade levou em conta os
seguintes fatores:
1) Que existe barreira à entrada no mercado, já que a
mineração só é permitida mediante licença concedida pelo Departamento Nacional
de Produção Mineral (DNPM);
2) Que haveria uma limitação de comercialização em
raio de 100km, devido a custos de transportes, inviabilizando a compra do
produto de outros mercados.
Claramente se verifica que o primeiro fator é uma
restrição estatal. Isso será verificado adiante.
Já o segundo fator, limite geográfico de
comercialização, não parece relevante por si só. Trata-se de restrição à compra
do produto de outros mercados, mas nada diz sobre a disponibilidade do recurso
dentro do espaço considerado. Veremos adiante que esse fator está diretamente
relacionado ao primeiro.
Decisão
proferida pelo CADE no caso do Cartel da Areia
No caso do chamado "Cartel da Areia"
(processo administrativo 08012.000283/2006-66), três mineradoras foram
condenadas por suposta combinação de preços, com base em análise de custos
proposta por empresa de consultoria contratada.
Antes de mais nada, a condenação da consultoria que
realizou o estudo de preços parece absurda. Afinal, a mera realização de um
estudo indicando otimização de preços e custos (levava em conta, também, a
distância das jazidas ao mercado) não enseja a realização de controle de
preços. Isso só seria teoricamente possível se a consultoria fosse, na verdade,
a controladora das empresas, com poder total de comando. E, mesmo que fosse o
caso, seria relevante considerar, ainda, os elementos para efetivação desse
poder - a empresa de consultoria foi condenada com base no poder discricionário
e absoluto concedido pelo art. 36 da lei 12.529/11.
Já as empresas mineradoras foram condenadas por
indícios de combinação de preços e diante do fato de, juntas, deterem mais de
47% de participação de mercado.
Nesse sentido, é curioso que o voto do relator
reconheça, conforme defesa das empresas, a existência de 170 empresas
autorizadas pelo DNPM para extração de areia no Rio Grande do Sul. Não
obstante, o douto relator entende "por
óbvio, a grande quantidade de empresas com autorização do DNPM não afasta o
fato de as representadas serem responsáveis por aproximadamente 50% da areia
comercializada no Estado e por quase a totalidade da areia extraída no mercado
relevante".
Mas isso não parece nada óbvio!
Se existiam 170 empresas autorizadas à mineração, por
que elas não conseguiriam concorrer com as 3 formadoras do cartel? O processo
não indica nenhum impedimento tecnológico. Assim, se as empresas do cartel
praticavam preços mais altos, por que as outras, que não faziam parte do cartel
(e supostamente praticariam preços "de mercado") não conseguiam
concorrer com elas? Estaria o DNPM concedendo licenças a empresas não
qualificadas para competição, cujo objetivo seria apenas locar seu direito para
outras empresas? Se for esse o caso, por que o DNPM não revogou essas licenças
ou concedeu licenças para empresas capacitadas?
Portanto, pelo menos no que diz respeito às demais
empresas (seja lá quantas forem), com licença do DNPM e não integrantes do
suposto cartel, não pareceu existir impedimento para atuação no mercado.
(...) Se a entrada no mercado for livre, as empresas
em conluio podem, ao procurar manter seus altos preços, estar involuntariamente
atraindo novos concorrentes, os quais revelarão a verdade: que preços mais
baixos são sustentáveis. Da mesma
maneira, caso não ocorra a entrada de nenhum concorrente, tais empresas em
conluio podem estar demonstrando que a estrutura de custos realmente justifica
os atuais preços altos como sendo os mais baixos possíveis em um mundo
concorrencial. (Kirzner, 2013)
Vê-se, claramente, que a indicação de participação de
mercado, por si só, não é relevante. A concentração de mercado pode advir do
sucesso empresarial (beneficiando os consumidores, não haveria mal nisso) ou da
concessão de direitos de exclusividade. E direitos de exclusividade duradouros
dependem da participação do estado.
Como, então, essas três empresas conseguiram formar
um cartel, obtendo vantagens de preço sem atrair o interesse da concorrência?
O próprio relator do voto condutor no Cade admite que
a concessão de licenças é uma grande restrição nesse mercado. Porém,
simplesmente desconsidera o papel do estado na formação do cartel.
Possivelmente o controle das licenças não é apenas
uma restrição ao mercado. É o próprio fator causador do cartel. Só isso
explicaria que, supostamente, três empresas possam praticar preços combinados
sem atrair o interesse da concorrência (que o processo do Cade admite ser
existente, mas não infere o porquê de seu imobilismo).
Diga-se de passagem que não há nada de novo no fato
do controle de acesso a mercados, por parte da atuação estatal, resultar na
formação de cartéis e monopólios:
Os lucros de monopólio nunca podem ser duradouros, já
que lucros são efêmeros, e todos acabam por reduzir-se a um retorno de juros
uniforme. No longo prazo, os retornos de monopólio são imputados a algum fator.
Qual é o fator que está sendo monopolizado neste caso? É óbvio que este fator é
o direito de entrar na indústria. No livre mercado, esse direito é ilimitado
para todos; aqui, no entanto, o governo concedeu privilégios especiais de
entrada e venda, e são esses privilégios especiais ou direitos que são
responsáveis pelo ganho monopolístico extra. Por isso o monopolista recebe um
ganho de monopólio, não por ser dono de algum fator produtivo, mas pelo
privilégio especial concedido pelo governo. E este ganho não desaparece no
longo prazo como ocorre com os lucros; ele é permanente, dura por todo o tempo
em que o privilégio permanecer e as avaliações do consumidor continuarem como
estão. (Rothbard, 2012, p. 60)
A situação fica mais clara se considerarmos
reportagem do site jornalístico Sul21, que indica a atuação do DNPM
restringindo a área de extração mineral, além da falta de recursos
governamentais para agilizar o processo de concessão de licenças - e aí já
entra na história outro órgão estatal, a Fundação Estadual de Proteção
Ambiental (Fepam). Referida reportagem traz indício sobre qual seria a origem
do problema de falta de concorrência no mercado de areia de Porto Alegre:
“Convenhamos, a extração de areia está longe de ser o
maior problema ambiental do Guaíba”, diz o superintendente do DNPM, que não
entende porque o órgão ambiental do Estado [Fepam] demora tanto para fazer o
zoneamento ecológico-econômico que pode permitir (ou não) a retomada da
extração de areia na mais antiga jazida subaquática de Porto Alegre. (Hasse, 2011)
E mais, a atuação estatal não estaria apenas inibindo
a atuação direta da concorrência (entrada de competidores e regularização de
jazidas), mas também a própria adoção de alternativas tecnológicas para suprir
o mercado. É o caso, por exemplo, da utilização da areia resultante da dragagem
hidroviária:
Um dos adeptos desse casamento é o atual diretor da
Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH), Vanderlan Vasconselos, advogado
disposto a buscar na extração de areia uma solução para desassorear os canais
de navegação do Lago Guaíba e da Laguna dos Patos. Aventada em passado remoto,
no entanto, a possível parceria areeiros-hidrovias foi soterrada quando se
concluiu que a amortização de uma atividade pela outra redundaria na redução no
orçamento do órgão público encarregado de contratar as dragagens. (Hasse, 2011, grifo meu)
Claro está, portanto, que se não consideramos apenas
uma análise superficial, de empresas envolvidas em "mercado
relevante" (como é procedimento do Cade), podemos identificar, a partir da
própria observação dos aspectos concorrenciais, a existência de disputas de
poder que ensejam a formação de cartéis. E, normalmente, por trás dessas
disputas, encontramos a atuação estatal (afinal, é o estado que detém o poder
de polícia, capaz de impedir a atuação das forças da concorrência).
Em complemento, o caso também poderia estar
relacionado à disputa entre os produtores de areia e seus compradores.
Destaque-se que o processo indica que a areia extraída era quase totalmente
direcionada para a construção civil. Não obstante, o processo não considera
sobre o poder dos compradores, dentre outros aspectos. Ressalte-se que seria
adequado uma análise concorrencial observar pelo menos as cinco forças
competitivas indicadas por Michael Porter: (1) poder de negociação dos
fornecedores; (2) poder de negociação dos compradores; (3) produtos
substitutos; (4) potenciais entrantes e (5) concorrentes de mercado (Porter,
1991).
Aliás, é interessante notar que a defesa de uma das
empresas relatou a oitiva de testemunhas de empresas concorrentes, no inquérito
policial que deu origem ao processo. De fato, não devemos ser ingênuos em
deixar de considerar que há sempre muitos interesses envolvidos em casos assim,
não só aqueles dos participantes do suposto cartel. Normalmente não se trata de
uma luta pela justiça, mas de uma luta pelo poder.
Referências consultadas:
BRASIL. Lei n° 12.259 de 30 de novembro de 2011. Disponível em: <http://tinyurl.com/nhqdlqs>. Acesso em: 12 fev. 2015.
BRASIL. Ministério da
Justiça. Cade. Cartel de Extração de Areia (PA nº 08012.000283/2006-66). Voto do
conselheiro-relator Paulo Furquim de Azevedo, 17 dez. 2008. Disponível em:
<http://tinyurl.com/ljeoz8e>. Acesso em: 12 fev. 2015.
BRASIL. Ministério da
Justiça. Combate a Cartéis e Programa de
Leniência. 3° ed., 2009. Disponível em: <http://tinyurl.com/hgvll6l>.
Acesso em: 12 fev. 2015.
BRASIL. Ministério da
Justiça. Guia Prático do CADE: a defesa
da concorrência no Brasil. 3° ed., 2007. Disponível em: <http://tinyurl.com/zye4qpd>.
Acesso em: 12 fev. 2015.
HASSE, Geraldo. Multa ao cartel da areia no rio Jacuí
empoçou na Justiça. Sul21, 22 ago. 2011. Disponível em: <http://tinyurl.com/hnfguwx>.
Acesso em : 12 fev. 2015.
KIRZNER, Israel M. A Irresistível Força da Concorrência de
Mercado. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 12 abr. 2013. Disponível em:
<http://tinyurl.com/hlg2osp>. Acesso em: 12 fev. 2015.
PIRES, Klauber Cristofen. O Estado e os Carteis - faça o que digo, não
o que faço. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 11 mai. 2011. Disponível em:
<http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=976>. Acesso em: 12 fev.
2015.
PORTER, Michael. Estratégia Competitiva: técnicas para
análise da concorrência e indústria. 8. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
ROTHBARD, Murray N. Governo e Mercado: a economia da intervenção
estatal. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2012.