Em 16 de outubro de 2017, o
Ministério do Trabalho publicou a Portaria MTB nº 1129, definindo conceitos e regulamentando
critérios relativos à fiscalização de trabalho forçado, jornada exaustiva,
condição degradante de trabalho e condição análoga à de escravo. Na mesma data o
assunto passou a ser destaque na imprensa, mas de uma forma que causou a
impressão que havia sido legalizado o trabalho escravo no Brasil.
Embora a Portaria MTB 1129
realmente apresente incongruências, abaixo seguem algumas constatações que mostram
como a discussão assumiu caráter de radicalismo, sob viés político-ideológico,
em detrimento do aperfeiçoamento do procedimento de fiscalização.
Seria desnecessário dizer que
não se está aqui a defender o trabalho escravo ou análogo. Mas, diante de tanta
desinformação e radicalismos, é necessário destacar que estou apenas
apresentando meu ponto de vista (entendo que tenho esse direito, respeitando
interpretações fundamentadas em sentido contrário).
I. ALGUMAS INFORMAÇÕES
NOTICIADAS PELA IMPRENSA
A imprensa noticiou que a
Portaria MTB nº 1129 entra "em choque com o que prevê o Código Penal"
e "dificulta a libertação de trabalhadores explorados", pois "a
portaria ministerial considera escravidão apenas a coação ou cerceamento da
liberdade de ir e vir, patente quando se verifica a presença de seguranças
armados para limitar a movimentação dos trabalhadores ou pela apreensão de
documentos".
A esse respeito, o Decreto-lei
2848/1940 (Código Penal), em seu art. 149, prevê como condição análoga à de
escravo situações como trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições
degradantes de trabalho, restrição à locomoção em razão de dívida ou de acesso
a meio de transporte para reter alguém no local de trabalho, bem como pelo uso
de vigilância armada ou de retenção de documentos.
Por sua vez, o art. 1º da
Portaria MTB 1129 indica as mesmas situações previstas no Código Penal. Porém,
a portaria apresenta conceitos mais completos e faz uma divisão de categorias:
trabalho forçado, jornada exaustiva, condição degradante e condição análoga à
de escravo (esta compreendendo submissão com coação, cerceamento de transporte
para reter alguém no lugar de trabalho, bem como pelo uso de vigilância armada
ou de retenção de documentos).
Aparentemente, o butim da
questão é que depreende-se da portaria que a "Lista Suja do Trabalho
Escravo" (que constitui um cadastro de empregadores que submetem
trabalhadores a condição análoga à de escravo) seria aplicável apenas para as
hipóteses do art. 1º, IV, da Portaria MTB 1129 (submissão com coação,
cerceamento de transporte para retenção no lugar de trabalho, bem como pelo uso
de vigilância armada ou com apreensão de documentos) e não para os casos de
trabalho forçado, jornada exaustiva e condição degradante (incisos I a III do
mesmo artigo).
Ocorre que não existe previsão
no Código Penal para que seja divulgado um cadastro de empregadores que
submetem trabalhadores a condição análoga às de escravo. Esse cadastro foi
instituído em portaria (atualmente a Portaria Interministerial MTPS/MMIRHD nº 4
de 11/05/2016), podendo, portanto, ter seus critérios revistos desde que em
respeito à lei. Assim, embora a Portaria MTB 1129 tenha realizado alteração na
classificação dos conceitos, não deixou de considerar o que está estabelecido
no Código Penal, nem suprimiu a publicação do cadastro.
Portanto, não procedem
afirmações que a portaria entra "em choque com o que prevê o Código
Penal" e que "considera escravidão apenas a coação ou cerceamento da
liberdade de ir e vir, patente quando se verifica a presença de seguranças
armados", bem como não há fundamento para a afirmação que a portaria
"dificulta a libertação de trabalhadores explorados".
A imprensa publicou, ainda,
que haveria um "risco embutido" quanto à divulgação do cadastro de
empregadores que submetem trabalhadores a condição análoga às de escravo, pois
o Ministro do Trabalho, previsto na portaria como responsável por determinar a
publicação, poderia tornar a inclusão de empresas "menos técnica e mais
política" e que "caso uma pessoa seja submetida a condições
degradantes e jornadas exaustivas, ela não poderá ser caracterizada mais como
um trabalhador escravo". Além disso, outro "risco embutido"
seria que "a nova portaria burocratiza o trabalho de fiscal a quem cabe o
ônus da prova do trabalho escravo".
Quanto à divulgação do
cadastro, devemos considerar que o art. 3º, §3º, da Portaria MTB 1129
estabelece que "diante da decisão administrativa final de procedência do
auto de infração ou do conjunto de autos, o Ministro de Estado do Trabalho
determinará a inscrição do empregador condenado no Cadastro de Empregadores que
submetem trabalhadores a condição análoga às de escravo".
Veja-se que o ministro
"determinará" e não "poderá determinar". Portanto, não
existe discricionariedade para que o ministro decida qual caso será inscrito no
cadastro ou não. Aliás, conforme art. 4º, §1º, da portaria, a organização do
cadastro é de responsabilidade da Secretaria de Inspeção do Trabalho.
No caso, os críticos levaram
em conta parte do art. 4º, §1º, que diz que a divulgação do cadastro "será
realizada por determinação expressa do Ministro do Trabalho", mas não consideraram
que a atualização do cadastro "será publicada no sítio eletrônico do
Ministério do Trabalho duas vezes ao ano, no último dia útil dos meses de junho
e novembro".
Em verdade, a crítica mais
adequada seria no sentido da desnecessidade de determinação do ministro, exceto
para publicação extemporânea, já que a própria portaria estabelece quem deve
atualizar o cadastro e quando ele deve ser publicado.
Também não é correto dizer que
"caso uma pessoa seja submetida a condições degradantes e jornadas
exaustivas, ela não poderá ser caracterizada mais como um trabalhador
escravo". Isso porque o Código Penal (cujo art. 149 não foi revogado ou
alterado), continua com essa previsão. E a Portaria MTB 1129 não exime tais
casos de punição.
A questão é que a portaria fez
uma divisão de conceitos de modo a se interpretar que apenas os critérios de
"condição análoga à de escravo" implicariam no registro na
"Lista Suja do Trabalho Escravo" (submissão com coação, cerceamento
de transporte retenção no lugar de trabalho, bem como pelo uso de vigilância
armada ou de apreensão de documentos).
Com relação à notícia que
"a nova portaria burocratiza o trabalho de fiscal a quem cabe o ônus da
prova do trabalho escravo", é óbvio que o fiscal deve provar a existência
de trabalho escravo ou afim, com sua devida caracterização e apresentação de
provas. É isso que prevê a portaria. Se o fiscal do trabalho pudesse
caracterizar o trabalho escravo ou análogo ao seu bem-entender, sem
"burocracia", estaria aberta a via do abuso, da arbitrariedade, da
corrupção e, também, para que autuações pertinentes pudessem ser mais
facilmente anuladas por falta de observância aos requisitos do devido processo
legal.
Também foi publicado que a
norma "acaba com a autonomia dos fiscais do Ministério do Trabalho",
que "as inspeções só serão válidas se o empregador autuado assinar o
recebimento do relatório de fiscalização", "que a inspeção dependerá
da comprovação de existência de segurança armada no local", que "a
portaria modifica os conceitos de trabalho análogo à escravidão definidos no
Código Penal".
Todavia, não há nada na
portaria que reduza a autonomia dos fiscais do trabalho. O que a portaria faz,
nesse aspecto, é estabelecer conceitos e critérios de fiscalização. Conforme já
destacado, se a fiscalização é realizada sem critérios, abre-se o caminho para
que seja anulada, o que pode mesmo favorecer infratores.
Também não é verdade que
"as inspeções só serão válidas se o empregador autuado assinar o
recebimento do relatório de fiscalização". O art. 4º, §3º, III, da
Portaria 1129, prevê que conste no processo administrativo a "comprovação
de recebimento do Relatório de Fiscalização pelo empregador autuado". Ora,
a assinatura do mesmo é o único meio de prova que o relatório foi entregue? Se ele
se recusar a assinar recibo, a inspeção não será válida? Causa perplexidade tal
interpretação.
II. DECLARAÇÕES
NOTICIADAS DE INSUBORDINAÇÃO NO ESTADO
A titular de uma das muitas
secretarias de um dos muitos ministérios do Governo Federal (a Secretaria
Nacional de Cidadania), disse que, com a portaria MTB nº 1129, "o trabalho
forçado só vai ser caracterizado se houver cerceamento da liberdade" e que
seria esvaziada a autonomia dos auditores fiscais. Também se queixou que
"o nome do empregador só vai para o cadastro dos empregadores do trabalho
escravo se tiver determinação do ministro do Trabalho. O que é extremamente
grave, inaceitável".
Já a Secretaria de Inspeção
do Trabalho (outra das muitas secretarias dos muitos ministérios do governo),
em evidente ato de insubordinação, posicionou-se contra a portaria e orientou
os fiscais do trabalho a desobedecê-la.
Um auditor do trabalho
registrou que "vincular o trabalho escravo ao consentimento do trabalhador
é um retrocesso de no mínimo 50 anos".
De igual forma, um procurador
do trabalho declarou que "só seria escravidão análoga se também tiver
exceção no direito de ir e vir por pessoas armadas. É um retrocesso
inacreditável”.
Um procurador-chefe do
Ministério Público do Trabalho (MPT) posicionou-se contra a obrigatoriedade de
boletim de ocorrência.
Outro integrante do MPT
declarou que "o governo está de mãos dadas com quem escraviza" e que
"o Ministério Público do Trabalho tomará as medidas cabíveis”.
Vejamos.
A portaria MTB nº 1129, em seu
art. 1º, estabelece os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva,
condição degradante e situações que caracterizam a condição análoga à de
escravo (submissão sob ameaça de punição, cerceamento de meio de transporte, manutenção
de segurança armada com fins de impedir o direito de ir e vir e retenção de
documentos no mesmo sentido).
Portanto, a observação da
Secretaria Nacional de Cidadania, que "o trabalho forçado só vai ser
caracterizado se houver cerceamento da liberdade" mostra-se irrelevante,
pois se atém a um dos conceitos (trabalho forçado) e esquece dos demais, que
também caracterizariam os mesmos efeitos punitivos (exceto quanto à inclusão em
cadastro de empregadores que promoveriam práticas análogas à escravidão,
conforme já tratado). Isso porque as penas previstas no art. 149 do Código
Penal continuam valendo - não houve alteração a respeito, o que sequer poderia
ser feito por uma portaria.
Também não é exatamente
correta a afirmação que "o nome do empregador só vai para o cadastro dos
empregadores do trabalho escravo se tiver determinação do ministro do
Trabalho". Conforme já observado acima (seção I), o art. 3º, §3º, da
portaria 1129 estabelece que o Ministro do Trabalho "determinará" e
não "poderá determinar" inclusão no cadastro. Portanto, não existe
discricionariedade para que o ministro decida qual caso será inscrito no
cadastro ou não.
Também não faz sentido a
declaração de auditor do trabalho que houve "um retrocesso de no mínimo 50
anos" ou do "retrocesso inacreditável” destacado por um procurador do
trabalho.
Com relação ao ato de
insubordinação da Secretaria de Inspeção do Trabalho, de resolver não aplicar a
portaria, caberia ao governo proceder a exoneração dos envolvidos.
Com relação à obrigatoriedade
da presença de autoridade policial, para que seja lavrado Boletim de
Ocorrência, parece adequado que o processo administrativo caminhe junto ao
inquérito policial. Tal exigência, inclusive, poderia tornar mais difícil a
ocorrência de falhas que favorecessem os infratores.
Porém, a crítica a esse ponto
deveria se concentrar na viabilidade técnica, na prática, se realmente haveria
efetivo policial para acompanhar cada fiscalização, em qualquer localidade.
Além disso, a polícia (no caso, Polícia Federal) não seria obrigada a alocar
recursos para seguir determinação de uma portaria do Ministério do Trabalho, a
quem não está subordinada.
Por fim, declarações como
"o governo está de mãos dadas com quem escraviza" são irresponsáveis.
O que se espera do Ministério Público é que cumpra e fiscalize a aplicação da
lei.
III. DECLARAÇÕES
NOTICIADAS DE ENTIDADES E TERCEIROS
A Comissão Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) - que não é órgão de igreja - "denunciou que a
portaria editada por Temer apenas atende a pressão de setores interessados em
fugir da fiscalização e responsabilização".
No mesmo sentido, um
coordenador da Comissão Pastoral da Terra declarou que “a portaria traz a ideia
reducionista que escravo é a pessoa amarrada sem possibilidade de fugir. Essa é
a ideia falsa utilizada no imaginário para tentar convencer que a legislação
atual é exagerada”.
Tais declarações são vazias, apenas
configuram viés político-ideológico. Essas entidades sequer se deram ao
trabalho de destacar os artigos da portaria que embasariam tais declarações.
Um portal de
extrema-esquerda publicou que a portaria "visa regovar o que está
estabelecido pelo artigo 149 do Código Penal brasileiro", em
"evidente afronta ao estado democrático de direito".
Outro site, de mesmo
viés, publicou que haveria "a necessidade do impedimento de ir e vir para
a caracterização do crime, tornando irrelevante as condições de trabalho às
quais uma pessoa está submetida".
Conforme demonstrado acima
(seção I), os conceitos indicados na Portaria MTB 1129 são os previstos no
Código Penal. Além disso, uma portaria jamais poderia "regovar o que está
estabelecido pelo artigo 149 do Código Penal brasileiro". E, como não fez
isso, não há "afronta ao estado democrático de direito".
Por sua vez, também não é correto
que seja sempre necessário impedimento de ir e vir para a caracterização de
trabalho análogo à escravidão. Por exemplo, o art. 1º, IV, a, prevê "a
submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de
coação, realizado de maneira involuntária" - e cabe lembrar que o art. 149
do Código Penal continua em vigor.
Dessa forma, é igualmente
falso afirmar que se mostra "irrelevante as condições de trabalho às quais
uma pessoa está submetida".
Por sua vez, um sociólogo
ligado ao Instituto Ethos declarou que "a decisão configura grave
retrocesso nas políticas públicas de combate ao trabalho escravo" e que
"não se altera um artigo do Código Penal através de uma maracutaia".
Posicionou-se, ainda, contra a presença da polícia nas fiscalizações - "o
policial estará lá para protelar o processo, para retirar a caracterização
objetiva do crime" -, apesar de reconhecer que em dezenas de casos foram
registrados excessos por parte dos fiscais nas investigações.
Não é verdadeira a afirmação
que houve alteração do Código Penal e não se pode falar em "retrocesso nas
políticas públicas de combate ao trabalho escravo" simplesmente porque a
Portaria MTB 1129 estabeleceu conceitos e definiu critérios para operações de
fiscalização (que, por óbvio, podem ser questionados).
Além disso, a afirmação que
"o policial estará lá para protelar o processo, para retirar a
caracterização objetiva do crime" revela apenas preconceito ideológico,
não merecendo maiores considerações.
Já um coordenador da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) disse que "a portaria acaba
com o conceito de trabalho escravo contemporâneo, reconhecido pela Organização
Internacional do Trabalho", que “com a nova portaria, só podemos
considerar trabalho em condições degradantes se houver restrição de liberdade,
com pessoas armadas ou isolamento geográfico que impeçam o trabalhador de ir e
vir”.
Ocorre que a portaria se atém
aos critérios indicados no Código Penal. Embora a classificação da forma
apresentada seja questionável, o fato é que o art. 149 do Código Penal traz
conceitos abertos. Por sua vez, as convenções nº 29 e nº 105 da OIT dizem
respeito a "trabalho forçado ou obrigatório", com ameaça e sem livre
manifestação, carecendo de melhor especificação a respeito.
Com relação à afirmação que
"com a nova portaria, só podemos considerar trabalho em condições
degradantes se houver restrição de liberdade, com pessoas armadas ou isolamento
geográfico que impeçam o trabalhador de ir e vir”, cabe destacar que condição
degradante é um dos conceitos especificados na portaria, cuja caracterização
não pressupõe vigilância armada e isolamento geográfico (art. 1º, III, da
Portaria MTB 1129).
Artistas - cuja relevância
da opinião política é discutível, mas sempre têm destaque na imprensa - declararam
que "Temer flexibilizou as regas para combate ao trabalho escravo" e
que a situação é de "crime contra a humanidade".
Não há regra flexibilizada. O
Código Penal continua valendo, sem modificações. A Portaria MTB 1129, por sua
vez, estabeleceu parâmetros para fiscalização, ainda carecendo de maior
regulamentação no procedimento (conforme prevê em seu art. 7º), o que se mostra
necessário, tanto para evitar arbitrariedades e assegurar o direito de defesa
quanto para evitar que infratores tenham facilidade em anular fiscalizações
viciadas.
Dizer que houve "crime
contra a humanidade" é apenas exagero de retórica, não merecendo maiores
considerações.
IV. CONCLUSÃO
Podemos destacar que a
Portaria MTB 1129 realmente possui pontos controversos. Embora os conceitos que
especifica não destoem do art. 149 do Código Penal, a forma estabelecida para
classificação, provavelmente no intuito de restringir as situações de registro
em cadastro e divulgação de lista, criou certa atecnia. Afinal, não há como
separar situações como trabalho forçado e condição degradante do conceito de
condição análoga à de escravo, diante do estabelecido no Código Penal.
Outra questão a ser observada
é a obrigatoriedade da presença da polícia nas operações de fiscalização. De
fato, isso pode ser desejável, mas não caberia ao Ministério do Trabalho fazer
tal determinação e nem mesmo pode-se afirmar que haverá recursos para tal em
todas as localidades de fiscalização.
Não obstante, o episódio
mostrou abundância de declarações precipitadas, infundadas e de viés
político-ideológico, o que acaba por prejudicar a relevância da discussão sobre
o tema. No mesmo sentido, causa espanto certas declarações de fiscais (que
acabaram entrando em greve por causa da portaria), de promotores e até de
membros do governo.
É provável que a Portaria MTB
1129 acabe sendo revogada, tanto diante das pressões que ora se verificam
quanto por causa de suas incongruências.
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REFERÊNCIAS
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