O sistema tributário
brasileiro, dada sua complexidade exacerbada, resulta em condições de incerteza
e insegurança jurídica para os empreendedores. Além do entrelaçamento de regras
e de competência conflitante entre os entes federativos, o próprio sistema cria
injustiças ao permitir a manutenção de situações ilegais, normalmente em prol
dos interesses arrecadatórios do estado. É o caso da incidência de IPI (Imposto
sobre Produtos Industrializados) sobre o frete.
A respeito do IPI, o art. 153
da Constituição Federal (CF) estabelece que sua instituição é de competência
exclusiva da União. Por sua vez, o Código Tributário Nacional (CTN, lei
5.172/1966) define como "industrializado o produto que tenha sido
submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou
o aperfeiçoe para o consumo" (art. 46, parágrafo único, CTN).
Ocorre que a lei 7.798, que
entrou em vigor em julho de 1989 alterando a lei 4.502/1964, ampliou a base de
incidência do IPI, passando a incluir o frete - "§ 1º. O valor da operação
compreende o preço do produto, acrescido do valor do frete e das demais
despesas acessórias, cobradas ou debitadas pelo contribuinte ao comprador ou
destinatário." (art. 14 da lei 4.502 alterado pela lei 7.798).
Essa alteração promovida pela
lei 7.798 institucionalizou duas ilegalidades evidentes:
A primeira ilegalidade diz
respeito à bitributação. Conforme art. 155, inciso II, da Constituição Federal,
as operações de transporte são de competência dos Estados e do Distrito Federal,
dado que o frete é tributado pelo ICMS (não por acaso, "Imposto sobre
operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre prestações de Serviços
de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação").
Assim, quando a lei 7.798
estabelece que o IPI passa a incidir também sobre o frete, há ocorrência de
bitributação (o frete passa a ser taxado tanto pelos Estados quanto pela União).
Além disso, o art. 154, inciso
I, da Constituição Federal só permite que a União institua impostos "desde
que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios
dos discriminados nesta Constituição" - exatamente o contrário do
estabelecido pela lei 7.798.
A segunda ilegalidade também
diz respeito ao art. 154, inciso I, da Constituição Federal, que determina que
a instituição de impostos deve se dar por lei complementar (que deve ser
aprovada no Congresso Nacional por maioria absoluta de todos os votos - art.
69, CF). Porém, a lei 7.798 é lei ordinária (aprovada por maioria simples de
votos - maioria de votos bastando que esteja presente mais da metade dos
congressistas, art. 47, CF).
Portanto, a lei 7.798 sequer é
instrumento válido para alteração do IPI, posto que tal só seria possível por
meio de aprovação de lei complementar.
Essa questão, da
inconstitucionalidade formal da lei 7.798, já foi apreciada pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) no Tema 84 de Repercussão Geral (que deve ser obedecido
em todas as instâncias do poder judiciário), que considerou inconstitucional a incidência
de IPI em situações de descontos, diferenças e abatimentos. O mesmo fundamento deve
ser aplicado no caso da incidência de IPI sobre o frete, o que é reconhecido
pelo próprio STF nas decisões destacadas a seguir:
AGRAVO
REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. IPI. BASE DE CÁLCULO. INCLUSÃO
DO VALOR DO FRETE DO PRODUTO. ARTIGO 15 DA LEI Nº 7.798/1989.
INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. RESERVA DE LEI COMPLEMENTAR. CONTROVÉRSIA
ABARCADA PELO TEMA Nº 84 DA REPERCUSSÃO GERAL. RE 567.935. AGRAVO
REGIMENTAL DESPROVIDO.
(STF -
AgR RE: 926064 SC - SANTA CATARINA, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento:
16/02/2016, Primeira Turma)
DIREITO
TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS
INDUSTRIALIZADOS. FRETE. INCLUSÃO NA BASE DE CÁLCULO. LEI ORDINÁRIA.
INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. APLICAÇÃO DO ENTENDIMENTO FIRMADO NO RE 567.935.
PRECEDENTES.
1.
Hipótese em que aplica-se o entendimento firmado no RE nº 567.935-RG, de
relatoria do Ministro Marco Aurélio, no sentido de que a inclusão do
frete da base de cálculo do IPI pelo artigo 15 da Lei nº 7.789/1989, padece do
mesmo vício de inconstitucionalidade formal. Precedentes.
2. Nos
termos do art. 85, § 11, do CPC/2015, fica majorado em 25% o valor da verba
honorária fixada anteriormente, observados os limites legais do art. 85, §§ 2º
e 3º, do CPC/2015. 4. Agravo interno a que se nega provimento, com aplicação da
multa prevista no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015.
(STF -
AgR RE: 1059280 SC - SANTA CATARINA, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de
Julgamento: 05/10/2018, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-233 05-11-2018)
DIREITO
TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. IPI. BASE DE
CÁLCULO. INCLUSÃO DO VALOR DO FRETE. IMPOSSIBILIDADE. MATÉRIA RESERVADA À LEI
COMPLEMENTAR.
1. A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido da
impossibilidade de inclusão dos valores pagos a título de frete na base de
cálculo do IPI. Esta Corte entende que o legislador ordinário, ao incluir o
frete na base de cálculo do referido imposto, usurpou competência normativa
reservada à lei complementar. Precedentes.
2.
Agravo interno a que se nega provimento, com aplicação da multa prevista no
art. 1,021, § 4º, do CPC/2015
(STF -
AgR ARE: 1152861 SP - SÃO PAULO 0012696-33.2010.4.03.6100, Relator: Min.
ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 05/10/2018, Primeira Turma, Data de
Publicação: DJe-236 07-11-2018)
Agravo
regimental em embargos de declaração em recurso extraordinário. 2. Direito
Tributário. 3. Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Frete e
demais despesas acessórias. Inclusão na base de cálculo por lei ordinária.
Impossibilidade. Art. 146, III, “a”, da Constituição Federal. Aplicação do
entendimento firmado no Tema 84 (RE-RG 567.935, Rel. Min. Marco
Aurélio). Precedentes. 4. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão
agravada. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 513409 ED-AgR,
Relator (a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 22/02/2019, ACÓRDÃO
ELETRÔNICO DJe-043 DIVULG 28-02-2019 PUBLIC 01-03-2019)
(STF -
ED-AgR RE: 513409 PR - PARANÁ, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento:
22/02/2019, Segunda Turma)
IMPOSTO SOBRE
PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS – VALORES DE DESCONTOS INCONDICIONAIS – BASE DE
CÁLCULO – INCLUSÃO – ARTIGO 15 DA LEI Nº 7.798/89 – INCONSTITUCIONALIDADE
FORMAL – LEI COMPLEMENTAR – EXIGIBILIDADE.
Viola o
artigo 146, inciso III, alínea “a”, da Carta Federal norma ordinária segundo a
qual hão de ser incluídos, na base de cálculo do Imposto sobre Produtos
Industrializados – IPI, os valores relativos a descontos incondicionais
concedidos quando das operações de saída de produtos, prevalecendo o disposto na alínea “a”
do inciso II do artigo 47 do Código Tributário Nacional.
(RE 567935,
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/2014,
ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-216 DIVULG 03-11-2014 PUBLIC
04-11-2014)
Tem-se, assim, uma situação em
que o estado (via Poder Executivo e Congresso Nacional) desrespeita os
critérios estabelecidos na Constituição Federal.
As empresas, então, passam a
ser cobradas de forma ilegal.
Questionamento a respeito chega
ao Poder Judiciário e o próprio estado (via Supremo Tribunal Federal) reconhece
a ilegalidade da incidência do IPI sobre operações de frete.
Não obstante, o que foi
estabelecido pela lei 7.789/1989 continua em vigor. Muitas empresas continuam
pagando IPI sobre frete, gerando custos que devem ser repassados aos clientes,
e continuam sendo fiscalizadas pelo estado para que se submetam a tal
ilegalidade. Se não o fizerem, estarão sujeitas a penalidades e todos os custos
decorrentes de defesa. A alternativa é acionarem a Justiça para que a
Constituição Federal seja respeitada (um absurdo por si só, além dos custos e
tempo envolvidos).
Desse modo, uma lei inconstitucional
continua tendo aplicabilidade e ocasionando custos para a sociedade, em
situação que é conveniente apenas para o estado, caracterizando (mais um)
privilégio odioso contra os pagadores de impostos.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
BRASIL. Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 22 fev. 2020.
BRASIL. Lei nº 4.502, de 30
de novembro de 1964. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4502.htm>.
Acesso em: 22 fev. 2020.
BRASIL. Lei nº 5.172, de 25
de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>.
Acesso em: 22 fev. 2020.
BRASIL. Lei nº 7.798, de 10
de julho de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7798.htm>.
Acesso em: 22 fev. 2020.